Im(Paciências)

Podia falar aqui das invencionices, chamemos-lhe assim, que nos últimos dias se debitaram sobre a Festa do Avante!, estilo «o palco 25 de Abril (...) foi colocado muito à frente do que é habitual, diminuindo assim o espaço destinado à audiência» (Público, 5 de Setembro), «este ano, os ícones comunistas rareavam» (Público, 6 de Setembro), ou a afirmação atribuída a José Casanova de que «esta festa ninguém paga» (O Diabo, 8 de Setembro), respigadas ao acaso entre outras. Mas a verdade é que já vai faltando a paciência para tanto dislate.

O que é que se poderá dizer de alguém que, de moto próprio ou por indução de terceiros, decidiu afirmar e publicar em letra de forma que aquela coisa maneirinha que é o Palco 25 de Abril avançou não sei quantos metros? Apenas que, ou manifesta uma deliberada má fé, ou é ignorante ou, como parece mais provável, sofre de ambos os males em simultâneo. Sendo embora reconhecida a enorme capacidade dos comunistas para encontrar soluções expeditas para problemas complexos, aqui se confessa que, não estando o palco assente em carris, não dispondo de rodas, pesando toneladas, e estando alicerçado em pedras e cimento desde que, há um ror de anos, Severiano Falcão orientou a sua implantação, ainda não se descobriu a forma de o pôr a funcionar tipo fole, ao sabor das conveniências. É que um palco daqueles não se manipula como qualquer página de jornal, onde acontecimentos sem importância podem ser realçados com gordas titulagens e fotografias a várias colunas.

Quanto à referência aos ícones comunistas que «rareavam», quem poderá afirmar onde começa a má fé e termina a ignorância? Porventura é também um problema de falta de vista, o que uma rápida visita ao oftalmologista pode ajudar a resolver, antes que a visão do mundo fique tão afunilada que não haja óculos que valham.

Diferente, mas igualmente a pedir medidas do forum médico, foi a «cacha» de O Diabo. Nada que um otorrino não possa resolver. É que José Casanova não afirmou em momento algum que «esta festa ninguém paga», mas sim que «esta festa, ninguém a pára». Teria bastado um bocadinho de atenção para desfazer o equívoco, uma vez que a frase antecede o final da intervenção: «Cá estamos e estaremos: porque, tal como a luta, a festa continua.» Coisas do diabo, dirão alguns.

É por estas e por outras que vai faltando a paciência. Porque tanta manifestação de «pluralismo», «independência», «isenção», «rigor», já enjoa. Ou, escrito de outra maneira, enoja. Não se espera, nem se reivindica, que os órgãos de comunicação social exaltem as iniciativas dos comunistas. Mas seria de esperar e é de exigir que um acontecimento com a importância sócio-cultural da Festa do Avante! seja tratado com a seriedade e o destaque que as mais elementares regras do jornalismo e do interesse jornalístico consagram, o que só dignifica a profissão e reforça a democracia.

Viciar as regras do jogo, mais a mais de forma tão soez, lançando mãos de falsidades, distorcendo a verdade, confundindo deliberadamente opiniões com factos, é uma vergonha para toda a comunicação social e para os seus profissionais que assim vêem a sua função (ainda mais) desprestigiada, num momento em que toda a classe enfrenta o perigo real da investida dos interesses neoliberais na área da informação. Talvez que os que se prestam a fazer o serviço de «voz do dono» acreditem estar a defender o seu pão com manteiga, mas é uma questão de tempo até que percebam que, também nesta frente, a dignidade não rima com subserviência.

É por estas e por outras que vai faltando a paciência. Afinal, do que eu gostaria mesmo de ter falado era de mestre Kurosawa. Morreu domingo, em Tóquio, com 88 anos, e o cinema - a cultura - ficou mais pobre. Sinto saudades de Kurosawa. É urgente ir ao cinema.

Anabela Fino


«Avante!» Nº 1293 - 10.Set.98