Saúde
PCP lança «desafio» ao Governo


A dispensa gratuita aos utentes do SNS de medicamentos que lhes sejam prescritos nos hospitais e centros de saúde, «cuja comparticipação financeira sai mais cara ao Estado do que a sua distribuição gratuita», e a implantação de um formulário nacional de medicamentos são algumas das medidas que, em conferência de imprensa realizada na terça-feira passada, sobre a situação na área da saúde, o PCP preconiza para inverter a política neo-liberal, «de mercantilização da saúde e destruição do Serviço Nacional de Saúde» dos governos anteriores.

Edgar Correia, membro da Comissão Política do PCP, acompanhado de Bernardino Soares, deputado à Assembleia da República e membro da Comissão Nacional para as Questões da Saúde, e Carlos Silva Santos, médico assistente graduado de saúde pública e também membro daquela Comissão Nacional do PCP, em declaração, que a seguir se transcreve, informou, ainda, que o PCP vai apresentar na AR um projecto de uma nova Lei de Bases da Saúde.

1. A situação na área da saúde continua a ser motivo de profunda intranquilidade e insatisfação para a generalidade da população portuguesa.
Persistem dificuldades de acesso em muitos centros de saúde e unidades hospitalares, que reflectem falta de médicos de família, de enfermeiros e de outros técnicos, atrasos no atendimento de utentes, e a existência de inadmissíveis listas de espera.
Os problemas que se prendem com a qualidade e com a humanização da prestação de cuidados de saúde encontram-se ainda longe de estarem satisfatoriamente resolvidos em muitas unidades e serviços.
E a carestia dos medicamentos e o crescente recurso a meios complementares de diagnóstico e à prestação de cuidados de saúde privados são cada vez mais incomportáveis para muitos portugueses - observe-se que em 1995 os portugueses pagavam já directamente do seu bolso, para além do que desembolsavam através dos impostos, mais de 40% das despesas de saúde, quando a média da União Europeia se situava na casa dos 25%.
2. A equipa responsável pelo Ministério da Saúde evidencia claras dificuldades em levar à prática as orientações que definiu, em separar o público e o privado, e em afrontar a voracidade dos grandes interesses que disputam e absorvem o grosso dos recursos do sector - desde as multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, à área das convenções, aos grupos económicos empenhados na privatização de saúde, aos grandes construtores civis.
É uma evidência que nos últimos meses se tem assistido a uma acrescida pressão por parte desses grandes interesses. E que os sectores neo-liberais, dinamizados no interior do próprio PS, têm tentado explorar as dificuldades e os compromissos contraditórios do Ministério da Saúde, por forma a serem mantidas intocadas práticas de parasitagem do sector público por interesses privados, e a serem retomados planos de destruição do SNS e da sua transformação num sistema mínimo e assistencialista para a população pobre.
É neste quadro que não podem deixar de ser avaliados politicamente quer o silêncio ensurdecedor do PS e do seu grupo parlamentar, quer o boicote noticioso que se registou, aquando da recente apresentação pública por parte do Ministério da Saúde das orientações para o SNS 21 - o "Serviço Nacional de Saúde para o virar do século".
A clarificação por parte do Governo e dos órgãos do PS de qual é a sua verdadeira posição política - se apoiam a destruição do SNS e a entrega da prestação de cuidados de saúde aos interesses privados, ou se sustentam a regeneração do Serviço Nacional de Saúde como instrumento fundamental da concretização do direito à saúde dos portugueses - constitui por tudo isso uma incontornável exigência nacional.
E sustentam o desafio que o PCP dirige ao Governo para a urgente concretização de importantes orientações e medidas, cuja adopção permitiria uma rápida e efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde pelo SNS, num quadro de redução de custos e de muito melhor aproveitamento dos recursos públicos.

3. A política do medicamento constitui, sem dúvida, uma área prioritária para essa intervenção.
Portugal é um país que se encontra particularmente vulnerável face aos interesses das multinacionais produtoras de medicamentos, as quais determinam em larga medida o perfil de receituário dos serviços, verificando-se um largo consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.
É conhecido como o sistema actual de comparticipação de medicamentos e a forma como são prescritos favorecem os medicamentos mais caros.
Os utentes e o orçamento do SNS são assim penalizados à custa do favorecimento ilegítimo dos interesses económicos do sector dos medicamentos.
As vantagens que poderão advir para o orçamento público da saúde e para os utentes da prescrição médica em todo o SNS passar a fazer-se por substância activa, nome genérico ou denominação comum internacional, e dela ser acompanhada pelo desenvolvimento do mercado de genéricos e pelo desenvolvimento de funções de farmácia no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, são da ordem das dezenas de milhões de contos por ano.
Em relação aos genéricos observe-se que o preço dos medicamentos é normalmente 20 a 30% mais baixo que os correspondentes de marca e que nos próximos três anos grande parte dos medicamentos com cotas significativas do mercado terão as patentes caducadas, o que aumenta a quantidade de genéricos que poderão ser utilizados.

O interesse nacional e os interesses dos próprios utentes impõem irrecusavelmente, e por isso o PCP reclama, entre outras medidas, que:

1. Passem a ser dispensados gratuitamente aos utentes do SNS os medicamentos que lhes sejam prescritos nos hospitais e centros de saúde que pertençam ao conjunto de medicamentos cuja comparticipação financeira sai mais cara ao Estado do que a sua distribuição gratuita.

2. A prescrição de medicamentos comparticipáveis pelo SNS passe a ser efectuada com indicação da substância activa, nome genérico ou denominação comum internacional, seguida de dosagem e forma farmacêutica.

3. Seja implantado um formulário nacional de medicamentos que tenha em conta o balanço entre o custo e o benefício terapêutico dos fármacos nele incluídos.

4. Enquanto o formulário nacional de medicamentos não entrar em vigor, sejam adoptados os seguintes procedimentos:
· caso o médico deseje optar pela marca comercial de um determinado laboratório, isso deve ser expresso depois da indicação da substância activa, dosagem e forma farmacêutica;
· se essa marca comercial não for a de preço mais baixo o farmacêutico terá de informar o utente qual o medicamento comparticipável com igual composição quantitativa e qualitativa e com preço mais baixo, de modo a que o utente possa fazer a sua opção de compra de forma esclarecida.
5. Seja promovida activamente a utilização dos medicamentos genéricos, devidamente certificados, de acordo com as normas de patentes vigentes internacionalmente.

6. Sejam desenvolvidas as estruturas das farmácias dos hospitais de modo a permitir o fornecimento de medicamentos aos utentes que acedem às urgências e consultas externas.

7. Seja alterado o sistema de comparticipação de medicamentos com a eliminação dos medicamentos que tenham uma eficácia terapêutica discutível e preços relativamente excessivos, de forma a aumentar o valor da comparticipação nos medicamentos essenciais.

4. O PCP tem repetidamente alertado para a gravidade da situação na área da saúde.
Tem acusado os interesses ilegítimos e a promiscuidade entre o sector público e o privado que, como um cancro, alastraram no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e que constituem o principal obstáculo à resolução dos seus problemas.
Tem reclamado do actual Governo, de forma insistente, uma verdadeira inversão da política neo-liberal, de mercantilização da saúde e de destruição do Serviço Nacional de Saúde, que foi conduzida pelos governos anteriores.
Tem apresentado propostas fundamentadas no domínio da política de saúde, cuja adopção já teria permitido travar a degradação do Serviço Nacional de Saúde, globalmente avaliada, e alcançar uma efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde.
E anuncia a próxima apresentação na Assembleia da República de um projecto de uma nova Lei de Bases da Saúde, em consonância com a reforma democrática do SNS que activamente sustenta.


«Avante!» Nº 1297 - 8.Outubro.1998