40 anos
depois
o Comboio da Liberdade
Já não temos medo!, afirmava-se em cartazes empunhados entre a multidão centenas de milhar de pessoas que em Lisboa esperaram por Humberto Delgado. Fim de um percurso, de comboio, que tivera o seu início no Porto, onde uma massa compacta de manifestantes saudara o general sem medo. Foi há 40 anos, em Maio de 58.
Uma data que hoje se assinala em festa, com a repetição do percurso do comboio da liberdade acompanhado dos aplausos, dos sons de fanfarra e de tambores, pelas mesmas estações onde então se deteve o candidato assumido pelos antifascistas. Mas que, há quatro décadas atrás, envolveu grandes massas de manifestantes, gente que há muito ansiava por sentir o cheiro da liberdade. E a violência repressiva, as prisões, os feridos. O Avante! de então noticiava centenas de prisões efectuadas nas manifestações em Lisboa e Porto e dezenas de feridos sob prisão, nos hospitais.
Em escassos oito dias de liberdade por medida e a prazo, como afirmava então o jornal clandestino do PCP, o país viveu horas sem par da sua luta contra a tirania de Salazar. Um momento ímpar que, como todos sabemos, não deu os frutos imediatos de uma então impensável vitória eleitoral de um candidato das forças anti-fascistas, mas sem dúvida contribuiu para avanços claros na luta popular e lançou as sementes de um processo que iria abrir caminho para o 25 de Abril.
Sábado passado, e por iniciativa da comissão para as comemorações dos 40 Anos das Eleições de 58, o comboio da liberdade voltou a fazer o percurso do general Delgado, relembrando assim um momento importante da luta anti-fascista . Uma viagem com início na estação de S. Bento do Porto, que terminou em Santa Apolónia, em Lisboa, recebida pelas bandas da Cova da Piedade e da Incrível Almadense. Na gare, uma exposição temática Não se assassina a liberdade lembra nomes diversos de entre os muitos de gente que foi assassinada. Pela sua luta pela liberdade, ou muito simplesmente porque a sua palavra se tornou incómoda. Nomes como o de Che Guevara ou Salvador Allende, de Amílcar Cabral ou de Luther King.
No comboio da
liberdade participou uma delegação do PCP, dirigida por
Carlos Carvalhas e que integrou Octávio Pato, Carlos Brito, Ilda
Figueiredo e Dias Lourenço.
Na Comissão de Honra das comemorações das eleições de 1958
participam também Alberto Vilaça, Álvaro Cunhal, António
Abreu, Aurélio Santos, Domingos Abrantes, José Morgado, Lino
Lima e Óscar Lopes.
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Obviamente 58
«O que quer dizer obviamente ?»
«Obviamente demito-o. Quer dizer que é claro que o demite. Ao Salazar.»
E assim, com a retumbante declaração do café Chave d'Ouro, Humberto Delgado ganhava o apoio geral, nessa Primavera de 1958, e os portugueses analfabetos ou de pouca letra aprendiam uma nova palavra. Arlindo Vicente, cujo retrato se andava a colar em pequenos selos por toda a cidade, e que reunia a simpatia de muitos - entre os trabalhadores e os intelectuais, os jovens -, desiste a favor do candidato que com tal declaração se demarca claramente do salazarismo que servira durante anos. Agora eram os selos com a foto de Delgado que se humedeciam antes de colar, em profusa discrição...
Obviamente, pois, todos a Santa Apolónia, em 13 de Maio. Sabia-se lá o que acontecera no Porto. Só mais tarde a capital veio a ter conhecimento do apoio de massas que saudara o general. É que a vitória festejava-se já pelo País, num entusiasmo que a repressão não conseguia refrear.
O testemunho de alguém, no meio da multidão, não excede, a não ser para os que olhavam do alto das janelas ou subiam aos candeeiros ou se empoleiravam na estátua de D. José, mais de três metros de distância. O caminho para Santa Apolónia era uma marcha que engrossava, milhares de pessoas à hora da saída do trabalho. Gente de todas as aparências sociais que nesse tempo eram - as aparências - bem vincadas. Um mar de chapéus a cobrir empregados e funcionários. A ganga azul de operários segurando ainda a lancheira. O ar jovem e penteado dos estudantes. Uma vaga de gente que descia as ruas na direcção do rio e se aglomerava, compacta, no Terreiro do Paço. A polícia já lá estava, a impedir a passagem para Santa Apolónia, e ainda não envergava os sinistrios capacetes negros. A multidão engrossava e estendia-se a cobrir a grande praça. Os polícias tremiam de nervos, à frente de todos. «Calma», diziam, «não se pode passar». Eram muitos mas, como lembrei, só se podiam ver os poucos ali à frente. Um homem ripostava: «Mas, olhe lá, você é do povo, como nós. Diga lá quanto é que ganha para sustentar a família!» O guarda mostrava um sorriso temeroso. Uma senhora insistia, esmagada entre a multidão e os cívicos, que queria passar, tinha de ir para casa. Levantou-se gritaria contra a teimosia policial. Um dos guardas perdeu a tramontana e, no empurrão da massa, agarrou no bastão e descarregou-o na cabeça da mulher. Viu-se-lhe a cara, um vislumbre, o olho esmagado, uma pasta de sangue. O guarda deixou de ver-se - como recordo, o testemunho só alcançava três metros de distância. O homem foi engolido pela massa e dele apenas se viu o boné a saltar, como rejeitado pela ira. Depois o cassetête voou. E por fim, como um espantalho, o corpo do homem que os outros guardas se apressaram a levar dali. «Calma», diziam eles. Brancos como a cal da parede.
A espera gastara
horas. De vez em quando um grito a rasgar a paciência. «Viva a
República! Viva a Liberdade!» Enrouquecia-se. «O homem já
não vem.» «Desviaram o comboio.» «Prenderam-no.» Perguntas,
incentivos. Diálogos sem olhar a quem. A certa altura, um tipo
vestido de operário, começou a resmungar. Que não estava
certo, as pessoas deviam ir para casa, as manifestações eram
proibidas. Fez-se a custo um espaço em redor da voz. O homem
sacou da carteira, mostrou um cartão da Legião. O espaço
fechou-se. «É bufo!», gritaram. O homem foi engolido na raiva.
Entardecia. «Todos para a sede da candidatura!», ouviu-se.
Sede? Havia quem não soubesse o que era, onde era. Alguém
explicava que «o sr. general não vem por aqui; foi impedido;
vamos para a sede!»
A multidão rodou surdamente, abandonando o rio, subindo agora a
cidade. Já não era a festa mas a luta que lhe determinava o
caminho pelo Terreiro do Paço, as ruas Augusta, do Ouro, da
Prata, o Rossio. A GNR fez a sua aparição bestial, cavalos e
chanfalho em riste. Nos Restauradores levantou-se aos ombros um
homem ferido na cabeça e no ombro, a escorrer sangue. «Viva a
Liberdade!» As vagas de cavalaria desencadeavam-se sobre a
multidão que lhes abria espaços e voltava a juntar-se num
cortejo determinado e poderoso.
A sede lá estava, um prédio ao lado do Hotel Vitória. A GNR
avançou de novo e os cavalos espantavam-se contra as pessoas. Um
homem correu para um cavalo, cortou-lhe os arreios com a navalha,
derrubou o guarda, o bicho espavorido sobre os canteiros da
placa. Tiros. Estampidos secos, os primeiros nos ouvidos de
muitos. A liberdade, essa, tinha de ser conquistada, arrancada à
força. Obviamente. Leandro Martins
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O
general não foi a Braga
- por Lino
Lima
O general devia ir
ao distrito de Braga em campanha de propaganda eleitoral, da
mesma forma que fora a todos os outros.
Nós, os chamados democratas de Braga, inicialmente ainda
desconfiados dele por causa do seu passado de legionário
e salazarista, tínhamos declarado o nosso apoio à
candidatura de Arlindo Vicente. Mas como tínhamos a percepção
de que o nome de um general no activo acabaria por reunir toda a
oposição, acrescentámos logo que não hostilizaríamos
a candidatura dele. Esta, entretanto, tinha-se organizado no
distrito na base dos elementos que haviam constituído a CEUD.
Mas, na altura em que Delgado tinha programado a sua visita ao
distrito, já se havia encontrado com o nosso primeiro candidato,
que desistira a seu favor. Os anti-fascistas tinham, portanto, um
só candidato, graças aos esforços do general que, desprezando
os conselhos de alguns daqueles que o cercavam e que não queriam
compromissos com os comunistas, como eles chamavam aos
apoiantes de Arlindo Vicente, oferecera a este uma desistência
honrosa. Ele era um génio da agitação, como lhe chamou
Salazar, e percebia que a unidade dos opositores ao regime
era fundamental para desenvolver o movimento popular que
desencadeara. Ele sabia que só o povo nas ruas seria capaz de
deslocar as Forças Armadas e derrubar o regime fascista. E que,
para isso, era necessário unir todas as forças, esquecendo
divisões mesquinhas que alguns queriam continuar a alimentar. No
próprio distrito de Braga isso se verificou, mesmo depois da
desistência de Arlindo Vicente. Quando nós, os que tínhamos
apoiado este, nos fomos apresentar na candidatura do general a
fim de lhe dar o nosso apoio prático e militante nas suas
organizações, não nos aceitaram porque o general era deles! O
povo do distrito, porém, desconheceu esta atitude mesquinha e,
quando soube a data e o itinerário da sua visita, encheu as
estradas e as ruas por onde ele iria passar. Naquela cidade de
onde partira o 28 de Maio de 1926, que deu início à ditadura
que sofríamos há tantos anos, e nas estradas daquele Minho que
os salazaristas se tinham esforçado tanto por manter ignorante e
beato, centenas de milhares de pessoas reuniram-se para vitoriar
o general sem medo. Propositadamente e justamente ninguém
comunicara que ele tinha sido proibido na véspera de ir fazer
campanha eleitoral no distrito de Braga! Em um livro recente de
Iva Delgado publicam-se documentos relacionados com esta
incrível proibição. Na Avenida Central da cidade de Braga,
onde estava a sede da candidatura, juntou-se uma multidão
compacta, que vitoriava Delgado mesmo na sua ausência! A
Polícia de Segurança Pública atacou o povo com a brutalidade
do costume. Á entrada do bairro Carandá, um bairro popular de
ruas estreitas, desaparecido depois do 25 de Abril, dispararam
rajadas de metralhadora. Penetraram no Nosso Café à
cacetada. Os encontros com os populares generalizaram-se e
assumiram um tal aspecto que, para o fim da tarde, a polícia
teve que recolher à esquadra e a cidade começou a ser policiada
pela Guarda Republicana, que pedia aos cidadãos amavelmente que
regressassem às suas residências.
No dia seguinte, logo de manhã cedo, a PIDE desencadeou uma larga campanha de prisões, que abrangeu vários de nós, os chamados democratas de Braga, mas também alguns dos que haviam constituído, desde o início, as comissões de apoio ao general. Essas prisões foram-se estendendo para os distritos do Porto, de Vila Real e Bragança. As grandes salas das prisões privativas da PIDE, no Porto, encheram-se de democratas, que delas só saíram depois das eleições. Foram ao escritório dos advogados António Macedo, que tinham libertado na véspera, e dos irmãos Cal Brandão e prenderam todas as pessoas que lá encontraram, para além deles próprios, a empregada e um cliente, que até era legionário. Estes dados mostram o autêntico ambiente de perseguição e terror em que se realizaram as chamadas eleições à Presidência da República. Mas o povo superou tudo isto e, como disse Salazar, «se a campanha actual durasse mais um mês», o general Delgado ganha as eleições, segundo contou um seu biógrafo. Assustado com o que se passara, que chamou de possibilidade de um «golpe de Estado constitucional», acabou imediatamente com a eleição do Presidente da República pelo voto popular directo.