TRIBUNA
Ministros
políticos e lutas

Por Lino de Carvalho


Terminou o calvário político do Engº Gomes da Silva, traduzido em problemas de saúde que todos lamentamos. Mas, seguramente, não acabou o calvário da agricultura e dos agricultores portugueses, protagonizada na continuação da mesma política que, ontem com os Governos do PSD, hoje, com o Governo do PS, não ataca os factores estruturais que estão na base da permanente crise do sector e dos protestos dos agricultores, independentemente da genuinidade de alguns deles.

E foi esta separação – entre a origem de certas manifestações e a substância dos problemas existentes – que alguns comentadores da nossa praça, como Oscar Mascarenhas (Diário de Notícias -–23/09/98) não quiseram ou não conseguiram compreender a propósito de um voto de protesto a que o PCP deu o seu acordo na Assembleia da República. Porventura encadeados pela operação de diversão que o Ministro Jorge Coelho levou até ao hemiciclo não perceberam que o PCP separou claramente o trigo do joio. É verdade que o voto originalmente apresentado pelo PP se radicava directamente nos acontecimentos de Ourique, que juntaram pouco mais de 300 proprietários agrícolas mobilizados pelos dirigentes da CAP, embora muito multiplicados, em número e em emoção, pelo milagre televisivo das reportagens em directo, milagre que nunca foi colocado á disposição de outras organizações da lavoura, como a CNA quando, por exemplo, reuniu mais de 4.000 agricultores ás portas da Assembleia da República.

E também é verdade que as movimentações dos dirigentes da CAP, de representatividade mais que discutível, só lateralmente têm a ver com os problemas reais dos agricultores portugueses por várias ordens de razões: os dirigentes da CAP têm sido, em Portugal, co-responsáveis das políticas agrícolas, pela influência decisiva que desde sempre exerceram nas orientações do Ministério da Agricultura respaldados no monopólio da representação institucional que lhes foi outorgado pelo PSD; foram apoiantes da reforma da PAC, designadamente quando o então Ministro do PSD Arlindo Cunha lhes garantiu apoios acrescidos para os grandes produtores de cereais e a aprovação de um regulamento comunitário, envolvendo verbas de cerca de 20 milhões de contos para apoiar a extensificação animal e especificamente destinados aos proprietários latifundiários que tinham sido objecto de medidas da Reforma Agrária; gozaram – e gozam – de acesso quase exclusivo aos apoios financeiros comunitários e nacionais destinados ás organizações da lavoura; nunca protestaram contra a iníqua distribuição de apoios que favorece escandalosamente os grandes proprietários e o sector agro-industrial e discrimina a agricultura familiar; nunca se preocuparam com o facto da área mínima para acesso ás indemnizações compensatórias ter subido de 1 ha para 2 ha (alteração esta que só foi travada pela reacção da CNA bem como do PCP); nunca mobilizaram os agricultores quando estavam em causa, por exemplo, os pequenos produtores de tomate, de vinho ou de fruta. Neste quadro, os protestos dos dirigentes da CAP só podem ser entendidos por razões de divergências, que têm muito de privado, com o seu antigo assessor e até há poucos dias Ministro Gomes da Silva, pelo facto de terem perdido alguma influência nas decisões do Ministério quando o ex-ministro, percebendo que o grau de controle exercido pela CAP era excessivo, sentiu a necessidade de alargar o seu próprio espaço de manobra – e do Governo – abrindo-se ao diálogo e ao reconhecimento, embora parcial, da representatividade social de outras organizações como a CNA. Os dirigentes da CAP não suportaram a perda, embora relativa, desse monopólio da representação institucional e, por isso, têm utilizado (e procurado capitalizar) os problemas reais dos agricultores portugueses como arma de arremesso para atingirem os seus fins privados e dos grandes produtores de cereais, de oleaginosas e de carne que, no essencial, representam. Como também é verdade, e de certo modo insuportável, a hipocrisia daqueles (como o PSD e o PP) que tendo sido durante mais de uma década responsáveis pelo abandono da agricultura nacional vêm agora criticar a mesma política que seguiram e exigir o que nunca fizeram. Tudo isto foi dito pelo PCP na Assembleia da República.

Só que sendo isto tudo verdade, não é menos verdade que os problemas da agricultura portuguesa existem e que o Governo do PS não lhes soube dar resposta. E é isto que, aparentemente, Ministro e Governo não compreenderam transformando uma guerra privada numa guerra contra os agricultores, substituindo a resposta concreta aos problemas por operações de intimidação e por graçolas de gosto duvidoso, contribuindo assim para engrossar a onda de protesto. Ora, nem os agricultores portugueses podem estar sujeitos a serem instrumentalizados nesta guerra nem o PCP, a pretexto de se distanciar de quem protagonizava os protestos, pode ignorar que os problemas existem. Porque o que orienta as tomadas de posição do PCP são os problemas reais que urge resolver e o que se tratou foi de "expressar o vivo protesto da Assembleia da República pela falta de resposta do Governo aos problemas da lavoura nacional" e não um qualquer apoio aos manifestantes de Ourique.

A verdade é que: o Governo ignorou ou desvalorizou a gravidade do ano agrícola com quebras oficiais de produção, em relação á produção média de 94-97, que atingem os 62% no trigo, 65% na cevada e na aveia, 72% no triticale, 80% na pêra, 73% na cereja, 30% na maçã, 36% na uva para vinho, perdas ampliadas regionalmente em função das zonas onde essas produções têm um maior peso relativo; o ex-Ministro Gomes da Silva tentou manipular os dados estatísticos do seu próprio Ministério comparando os dados da produção de 1998 com os de 1997, ano igualmente anormal, em que foi accionada a declaração de calamidade devido também ás excepcionais quebras de produção por razões climatéricas. Convém não esquecer que 1998 é o segundo ano consecutivo de graves problemas de perdas de produção. Mas mais. O Governo do PS tem-se limitado a gerir – e mal – a política de subsídios e apoios ao rendimento porque supõe que é o que lhe rende mais eleitoralmente, sem prejuízo de medidas parciais positivas como a diminuição do preço do gasóleo agrícola. Não tem investido numa política de transformações estruturais da agricultura portuguesa, criando estímulos para que os agricultores portugueses adequem os sistemas produtivos ás condições de solo e de clima bem como ás condições de inserção nos mercados comunitário e mundial da agricultura portuguesa. Não tem reorientado os apoios – nem mposto esta discussão no plano comunitário – para as produções e os sistemas culturais em que o País, por razões naturais, tem maior capacidade competitiva (vinha, horticultura, fruticultura, azeite, produção pecuária autóctone, produção florestal de montado) concentrando, pelo contrário, os apoios nos cereais, nas oleaginosas e na grande bovinicultura. De 129,2 milhões de contos pagos pelo INGA - Instituto Nacional de Garantia Agrícola, em 1997, 63,1 milhões de contos (48,8%) foram para os cereais, as oleaginosas e os bovinos). Enquanto as ajudas aos cereais e ás oleaginosas chegam a ultrapassar o valor da própria produção os apoios ás chamadas culturas mediterrânicas – estratégicas para Portugal e para a agricultura familiar – não passam dos 5% a 6% do valor da respectiva produção.

Mas mesmo quando Portugal tiver uma agricultura adaptada ás nossas condições edafo-climáticas a verdade é que, por razões geográficas, estaremos sempre muito dependentes dos humores da natureza. É por isso que era urgente já ter sido construído em Portugal um sistema de cobertura de riscos – um seguro agrícola de produção – adaptado ás condições específicas da nossa agricultura e não construído com a preocupação primeira de reduzir os riscos e os encargos das seguradoras. Está á vista de todos que o Governo do PS entre enfrentar os interesses das seguradoras ou abandonar a agricultura á sorte do clima escolheu o segundo caminho. E por isso, os agricultores vêem-se na contingência de exigir apoios "quando faz seca e quando faz chuva" o que, diga-se, muito boa cultura urbana não compreende.

O mesmo se passa quanto á afectação dos apoios aos vários segmentos sociais da agricultura. 90% dos apoios comunitários e nacionais são absorvidos por 3% a 5% das explorações. Por exemplo, o Governo PS criou em Junho de 1997, uma linha de crédito de 150 milhões de contos para desendividamento e relançamento da actividade agrícola. Das 5605 operações de crédito aprovadas pelo IFADAP até ao início deste ano envolvendo um valor de 132,6 milhões de contos, 9,6% (538) das candidaturas aprovadas absorveram 62% (82,7 milhões de contos) do total do crédito reestruturado, sendo que os principais beneficiários são a agro-indústria – incluindo empresas do grupo Parmalat , matadouros e empresas de rações – e os grandes proprietários (família Almodôvar; Casa Agrícola Santos Jorge; Rosado Fernandes; Casa Cadaval; Teles Varela; Finagra; Fundação Eugénio de Almeida; Henrique Champalimaud; Montez Champalimaud; José Maria da Fonseca; Atlantic Company - Espirito Santo, etc.), isto é, no essencial os mesmos que já constavam da lista dos maiores beneficiários de apoios ao rendimento que o PCP divulgou em Março de 1997.

Não se vislumbram igualmente políticas fortes em áreas tão estratégicas como o reordenamento fundiário do País; a política florestal; os incêndios ou, na comercialização, a criação de centros de concentração da oferta onde os agricultores possam estar em condições de negociar com as grandes centrais de distribuição ou a construção de uma rede de frio. Não foram tomadas as medidas adequadas ao combate á BSE, como a proibição total de incorporação de farinhas de carne e de ossos na alimentação animal, e por isso os problemas, que vinham dos Governos do PSD, mantêm-se, irão com toda a probabilidade prolongar-se e multiplicar-se nos próximos anos com consequências na saúde pública e no rendimento dos produtores pecuários e o País corre o risco de sofrer um - embora hipócrita - embargo geral da Comunidade Europeia.

Estas são as questões de fundo com que a agricultura e os agricultores portugueses se debatem e que o PCP não pode em nenhum momento ignorar. É por isso que se afirma com tanta insistência que o problema não é, no essencial, de pessoas mas de políticas o que a nomeação do novo Ministro vem confirmar. Como afirmou o primeiro – ministro e o recém empossado Ministro da Agricultura a política agrícola do Governo vai continuar a ser a mesma. O que significa que os problemas estruturais da agricultura continuarão a não ser atacados; que a afectação dos recursos ás diversas produções continuará na mesma; que a agricultura familiar e cooperativa continuará a ser marginalizada nos apoios; que a gestão eleitoral do Ministério vai intensificar-se. E aqui, desconfio, com mais força e com alguma reaproximação á CAP. Vai uma apostinha ? Nestas circunstâncias ninguém pode exigir do PCP que á força de se querer "construir uma alternativa e uma pressão á esquerda" se transforme no "grilo falante" ou simplesmente na consciência crítica do PS. Como diria José Régio, não vamos por aí, não vamos por aí, não vamos por aí.


«Avante!» Nº 1297 - 8.Outubro.1998