O Big
Deal do capital
Por Anabela Fino
O governo sul-coreano, numa manifestação de humor negro que no mínimo se pode classificar de mau gosto, baptizou de big deal (grande negócio) a completa reorganização do sector industrial que está a levar a cabo em todo o país. Ninguém sabe exactamente qual a dimensão e contornos da referida reorganização, mas o que se conhece chega e sobeja para provocar o desespero e a revolta de um povo que desconhecia até há pouco tempo o significado da palavra desemprego em massa, e que continua a não dispor de um mínimo de protecção social.
Um dado adquirido é
que o big deal sul-coreano passa pela reestruturação dos
principais conglomerados nacionais, e pela paragem e fusão de
numerosas das suas filiais, o que naturalmente significa a
supressão de milhares de postos de trabalho. Na mira da
«reestruturação» estão sectores até à data poupados pela
crise, designadamente os bancários e funcionários de grandes
empresas e do sector público. No sector dos Seguros, por
exemplo, foi anunciado o encerramento de quatro companhias -
Coryo, BYC, Taeyang e Kukje -, que de uma penada liquida cerca de
dois mil postos de trabalho. Uma gota de água no oceano, dado
que a total reestruturação do sector prevê o despedimento de
onze mil trabalhadores até ao final do ano. Os trabalhadores das
sociedades que operam na Bolsa também não escapam ao
«negócio»: no primeiro trimestre do ano foram suprimidos cinco
mil empregos, e outros milhares estão na calha com o já
anunciado encerramento de mais cinco sociedades.
O sector bancário, por seu turno, tem agendada uma verdadeira
sangria. De acordo com as decisões divulgadas no final de
Setembro pela Comissão de Supervisão Financeira (CSF), os nove
estabelecimentos bancários em situação difícil devem reduzir
os seus efectivos de 40 a 50 por cento até ao ano 2000. Do
'pacote', os mais afectados são o Commercial Bank of Corea e o
Cho Hung Bank, que vão despedir de imediato mais de três mil
trabalhadores cada um; o Korea Exchange Bank (mais de dois mil),
o Seul Bank (mil cento e cinquenta) e o Korea First Bank (mil e
duzentos). No total, até final do ano, prevê-se que sejam
suprimidos cerca de trinta mil empregos.
Em causa não está, aparentemente, a necessidade de
reformulação do sector bancário. Basta dizer, por exemplo, que
o Hanil Bank e o Commercial Bank of Korea registaram, no primeiro
trimestre deste ano, perdas de várias dezenas de mil milhões de
wons (a moeda nacional). O que se contesta é que as
reestruturações assentem essencialmente, quando não
exclusivamente, na supressão de postos de trabalho, sobretudo
tendo em conta que o sistema de indemnizações aos desempregados
abrange apenas cerca de um quarto dos efectivos, não se
vislumbrando nenhum plano de criação de novos postos de
trabalho.
De acordo com as estatísticas oficiais, o número de
desempregados ascende actualmente a um milhão e quinhentos mil,
devendo aumentar de forma significativa nos próximos dois anos.
Por outro lado, o aumento dos desempregados está a ser
acompanhado pela degradação das condições financeiras em que
se processa o despedimento: a maioria dos novos desempregados já
não recebe as indemnizações correspondentes a doze ou vinte e
quatro meses de salário usuais até há poucos meses.
As aguerridas organizações sindicais sul-coreanas não estão
de braços caídos face a esta ofensiva. Após uma primeira
manifestação em meados de Setembro, que reuniu largos milhares
de trabalhadores, a Federação dos sindicatos do sector
bancário anunciou a decisão de desencadear este mês um vasto
movimento grevista. Idênticas tomadas de posição são de
esperar dos restantes sectores afectados pelo big deal,
tanto mais que as previsões de crescimento económico continuam
a ser revistas em baixa.
Óleo na fervura
O relatório de
Outono do Fundo Monetário Internacional (FMI) veio deitar mais
óleo na fervura do descontentamento social. O FMI constata agora
que os países do ASEAN (Filipinas, Malásia, Tailândia e
Indonésia) vão registar uma descida de 10,4 por cento do PIB no
final de 1998 (valor 7,7 pontos abaixo das previsões de Maio), o
que vai ter inevitável impacto em todas as economias asiáticas.
Para a Coreia do Sul, o recuo do PIB é de sete por cento em
1998. As consequências desta situação são conhecidas:
redução do consumo e do investimento superiores ao esperado,
perda de confiança dos investidores estrangeiros, fuga em massa
dos capitais. Uma mistura explosiva a que há que juntar a
crescente revolta popular, pois como sempre são os mais
desfavorecidos a pagar a mais pesada factura da crise.
O que está a suceder no Japão, economia de referência para
toda a Ásia, é elucidativo da gravidade da situação. Segundo
dados oficiais, no mês de Agosto, as vendas de produtos de
grande consumo caíram 5,1 por cento em relação ao mesmo mês
do ano passado, depois de terem conhecido uma retracção de 3,9
por cento no mês de Julho. Em Setembro, as vendas de produtos
alimentares baixaram 4,4 por cento, as de têxteis 5,3 por cento,
de mobiliário 14 por cento e de electrodomésticos 7,6 por
cento. O Ministério do Comércio Internacional e da Indústria
(MITI) reconheceu que as vendas a retalho estagnaram em Setembro,
confirmando a opinião dos que afirmam que «os consumidores
cortam nas despesas diárias, incluindo na alimentação».
Apesar de 60 por cento do PIB nipónico ser gerado pela procura
interna, até ao momento o governo não tomou nem parece
interessado em tomar medidas para relançar a procura. Pelo
contrário, anunciou a decisão de propor aos seus parceiros do
G-7 a implementação de uma ajuda de 30 mil milhões de dólares
para os países do sudeste asiático, numa tentativa de relançar
as respectivas economias, o que a prazo poderia contribuir para o
aumento das exportações nipónicas. Sucede no entanto que o
comunicado final da reunião do G-7, realizada no passado
fim-de-semana, não faz qualquer referência a esta iniciativa, a
que se opõem o FMI e os Estados Unidos. E no entanto, o
comunicado fala em «desenvolver novas capacidades», «utilizar
créditos garantidos e outras inovações para financiar o sector
privado», «expandir a capacidade de empréstimos do Banco
Mundial aos países agora afectados pela crise», etc.. Palavras
e mais palavras, que não terão qualquer significado se os EUA
não abrirem os cordões à bolsa. Ora justamente a guerra surda
que se trava nos EUA entre democratas e republicanos passa
também pela recusa de novas injecções de capital em organismos
como o FMI, tidas como essenciais para «ajudar os países
afectados pela crise».
Num contexto como o actual, os conflitos sociais são
praticamente inevitáveis. Depois das explosões registadas
recentemente na Indonésia - que obrigaram a sacrificar Shuarto e
estão a ser tão a custo controladas -, dos desaires eleitorais
dos conservadores no Japão e das lutas que se anunciam na Coreia
do Sul, entre outros exemplos, as forças do capital têm motivos
de sobra para se preocupar. Afinal, o big deal pode ser um
mau negócio.