A TALHE DE FOICE

O Bill da Net


Ontem, a página do Diário de Notícias sobre a Internet indignava-se em caixa com o seguinte: o «site» de Bill Gates na Web dedicado a Lisboa dá como esclarecimento aos cibernautas de todo o mundo, a «informação» de que o Padrão dos Descobrimentos é «um monumento aos conquistadores espanhóis».
Para que não restasse dúvidas, o justamente escandalizado articulista do DN foi ao pormenor de reproduzir a página, onde pontifica uma bela fotografia do Padrão dos Descobrimentos aproando o Tejo, com a Ponte 25 de Abril ao fundo e os seguintes dizeres ao lado: «A monument to the Spanish conquistadors stands at the harbor, Lisbon, Portugal».
Nada disto mereceria uma sombra de espanto, se Bill Gates fosse apenas o que aqui demonstra ser – um norte-americano empanturrado de dinheiro, sucesso e ignorância que, por isso mesmo, cauciona leviandades sobre os outros com a sobranceria de quem actua no mundo através do umbigo.
E dizemos «cauciona» porque, obviamente, o presidente da Microsoft não é pessoalmente responsável por este dislate sobre a capital lusitana e a história de Portugal. A sua responsabilidade está a montante, lá no alto da montanha de dinheiro onde, aí sim, desenha pessoalmente os leitos por onde se despenham os rios do seu poder. E são esses rios que traçam a ignorância essencial de Bill Gates, ao espalharem-se pelo mundo numa enxurrada de desatenções que denunciam a visão estreitamente chauvinista e bronca do seu deus ex machina, por muitos códices medievais que a criatura coleccione à força dos seus milhões, olhando tesouros da cultura universal como troféus a caçar pelo melhor predador.
Neste contexto, o assalariado de Bill Gates que transformou o Padrão dos Descobrimentos em monumento aos conquistadores espanhóis, até podia ter optado por dizer que o Padrão era uma homenagem ao Windows/98.
Continuava a ser um dislate, mas tinha a vantagem de enriquecer a galeria de troféus culturais do patrão.
Mas Bill Gates não é apenas um norte-americano empanturrado de dinheiro, sucesso e ignorância.
Ele é também «o homem mais rico do mundo» que excitou até ao delírio as primeiras páginas em Portugal, quando aqui se deslocou recentemente em viagem de negócios.
Ele é também «o homem mais rico do mundo» que viu esta sua viagem de negócios a Portugal ser transformada, pelas próprias altas instâncias do poder lusitano, numa espécie de visita de Estado a um reino de admiradores.
Ele é também «o homem mais rico do mundo» que, em Portugal, obteve o surpreendente privilégio de fazer o que sabe e quer como explorador de fortunas, sob os aplausos embevecidos dos próprios explorados.
Ele é também «o homem mais rico do mundo» que beneficiou pessoalmente, em Portugal, das mais subidas homenagens que um país pode proporcionar a alguém. E, neste caso, estamos a falar de um país com oito séculos de identidade, as mais antigas fronteiras da Europa e uma intervenção na História dos homens com uma singular importância.
Por tudo isto, o que espanta não é o retorno que «o homem mais rico do mundo» fez das deferências recebidas em Portugal, retribuindo tantas homenagens com o desprezo pela própria identidade dos homenageadores.
Está na lógica de quem compra originais de Leonardo da Vinci como quem pendura uma jóia ao peito, além de impor produtos no mercado que não funcionam.
Oque, verdadeiramente, espanta é termos assistido em Portugal, e em nome de todos nós, à recepção messiânica deste cavalheiro.
Pelo que o ridículo maior não está nas vigarices de um suposto génio. Está na suposta genialidade da homenagem nacional a um vigarista. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1297 - 8.Outubro.1998