TVisto

Honra e desfaçatez

Por Francisco Costa


O programa começava, em jeito de introdução, com uma série de depoimentos de jovens de ambos os sexos confrontados com expressões como «clandestinidade», «presos políticos», «PIDE», «fascismo», etc. E pela significativa amostragem do entendimento face a esses termos, uma considerável maioria daqueles jovens aparentava, afinal, um tranquilo e inocente afastamento acerca do seu real significado. O que vale por dizer que, bem vistas as coisas, em parte por errada perspectiva pedagógica em relação aos valores da Democracia, hoje mais entendida como um dom natural e não tanto como uma conquista dos que por ela se bateram, a juventude de hoje está em geral menos informada acerca do que constituíram entre nós quase cinco tenebrosas décadas de ditadura fascista.

Andou por isso bem Raquel Alexandre ao assim decidir começar o programa ao qual deu o título plural «Os Resistentes». Porque nunca é demais continuar a chamar a atenção dos portugueses para o que foram a opressão, as perseguições, as privações de liberdade, o sofrimento das torturas, os crimes e assassinatos a que foram sujeitos tantos e tantos compatriotas (em particular os comunistas) que, nas rigorosas condições da clandestinidade, deram as suas vidas (às vezes por inteiro medidas) em prol da liberdade do seu povo.

Conjunturalmente centrado sobre a luta desenvolvida contra o fascismo, durante longos anos, pelo militante e ex-dirigente comunista Jaime Serra – ali no fundo representando, de forma simbólica, várias gerações de destacados ou anónimos lutadores pela liberdade e pela democracia - o programa de Raquel Alexandre destacou-se pelo pudor da própria intervenção da jornalista, preferindo dar voz aos protagonistas relacionados com o objecto da sua investigação e optando pelo justo primados dos sons, imagens, documentos e relatos incomparavelmente mais valiosos, porque saídos da boca dos que viveram momentos tão dramáticos quanto exaltantes.

Embora, por vezes, as declarações de Jaime Serra pudessem revelar-se desarmantes pela «naturalidade» com que eram narradas situações terríveis - hoje, 25 anos após a conquista da Liberdade, absolutamente incompreensíveis para o cidadão «comum entre os mortais» - o facto é que esse aparente desprendimento face a situações de elevados perigos e tensões foi clarificado pelos relatos de amigos, companheiros de luta e familiares próximos, tornando transparente o que significavam para os militantes revolucionários antifascistas a prolongada privação da liberdade, os rigores da clandestinidade e até a destruição da privacidade e da vida em comum. Declarações sustentadas, ainda, pelos testemunhos oportunos de camaradas de Partido, como por exemplo Octávio Pato e Dias Lourenço, cuja participação foi essencial para a abordagem complementar de vários ângulos das situações concretas de luta.

Entretanto, por um desses «acasos de programação» que dificilmente poderá ser entendido como «pura coincidência», o facto é que, oito dias depois da transmissão deste notável programa, a mesma SIC entendeu transmitir uma outra Reportagem, desta vez dedicada aos perseguidores da Liberdade, com resultados práticos que, mesmo à distância de oito dias, não deixaram de constituir objectivamente como que uma resposta ao programa a que acabámos de nos referir.

Entendamo-nos: não estão aqui em causa as excelentes intenções com que a jornalista Ana Margarida Matos, por sua iniciativa ou por encomenda expressa, partiu para esta reportagem, justamente intitulada «Conversa em Família». O que está em causa é a circunstância de, mais uma vez (parecendo estarmos aqui perante uma deliberada repetição do «caso Rosa Casaco»), ter acontecido o que deveria ter sido antes previsto: o risco efectivo de se «virar o feitiço contra o feiticeiro», de se branquearem as responsabilidades e o envolvimento inteiramente empenhado e responsável destes miseráveis servidores do fascismo. Porque sempre assim aconteceu quando, entre nós ou em outras paragens, em diversas ocasiões e contextos, se procuraram equilibrar os dois pratos da balança ou se entendeu dar a voz a esbirros como, neste caso, foram (por ordem de entrada em cena) Óscar Cardoso, António Bernardo, Abílio Pires ou José Manuel Cunha Passo.

Era certo e previsível que, mais uma vez, ali surgiriam as justificações das «leis» que se estavam a cumprir e as desculpas com «os outros é que sabiam», a «defesa da Pátria» e outras hipócritas balelas. E o problema essencial levantado pela construção da reportagem a que a repórter meteu ombros é que os seus comentários «off», por mais que pretendessem estar em fria contraposição à desvergonha das declarações «in» dos entrevistados, jamais conseguiriam ter força suficiente para se lhe opor. E nem sequer, por exemplo, os grandes planos das mãos filmadas num bailado em rallenti - quando as vozes criminosas argumentavam que «torturas jamais existiram» - terão garantidamente suscitado a leitura dialéctica, linear e esclarecida, por parte da maioria dos espectadores.

Ao esquecer-se esta regra básica da comunicação de massas, contribuiu-se ao fim e ao cabo para, mais uma vez, salvar a face àqueles que, gozando e escarnecendo da dávida da liberdade de que usufruem, se mostraram indignos do povo a que pertencem, jamais hesitando em manchar de vómitos o elevado significado de Abril.


«Avante!» Nº 1297 - 8.Outubro.1998