EDITORIAL

O Nobel do nosso contentamento


Muito já foi dito e escrito sobre a relevância e o significado da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Igualmente sobre o contentamento tansbordante que esse facto provocou em muito milhares de pessoas em Portugal e no Mundo e que assumiu, naturalmente, dimensões particulares entre os leitores e amigos do grande escritor. Mas muito há ainda por dizer e escrever mesmo que fazendo-o com a consciência assumida do recurso a inevitáveis repetições.
A decisão da Academia Sueca confirma José Saramago como o grande escritor universal que o Mundo já reconhecera e consagrara enquanto construtor de uma obra literária que constitui um momento alto da criação e da criatividade artística. Por isso, este Nobel era há muito esperado por todos nós, seus amigos e seus leitores, beneficiários de mais de vinte anos do prazer da leitura de uma obra de rara luminosidade literária, renovadora do Romance e da Língua Portuguesa,levantada a pulso de talento , de originalidade e de trabalho persistente e espraiando-se numa vastidão temática plena de imaginação e de sonho, de inquietação e de esperança, de humanismo.

Referindo-se ao discurso que irá pronunciar perante a Academia Sueca, José Saramago afirmou: "Procurarei mostrar, literáriamente, que, de acordo com notícias recentes, 25 pessoas têm uma riqueza equivalente a 40 por cento da população mundial e superior à riqueza de mais de dois biliões de pessoas". E confirmando que, nele, o escritor e o homem de convicções se situam ao mesmo nível de grandeza, acrescentou: "Posso dizer que não tive que deixar de ser comunista para ganhar este prémio e que se tivesse que optar entre o Nobel e as minhas convicções, abandonaria o Nobel". Eis, luminarmente expressa, a dignidade e a coerência de quem - como refere a saudação da Direcção do Sector Intelectual de Lisboa do PCP, "em nome do colectivo a que pertences" - "sempre colocou entre os seus mais altos títulos de honra a sua opção de comunista, opção de fundo que é indissociável do fôlego e da grandeza de uma obra onde com tantas vozes se exprime o mais complexo e profundo sentir do ser humano".

Como acima se sublinhou, o histórico acontecimento, desta vez condignamente tratado pela generalidade da Comunicação Social, provocou uma enorme onda de alegria , transformou em Festa um dia que, sem isso, seria mais um dia igual a tantos outros vividos e por viver. Dadas as circunstâncias não surpreende que assim tenha sido, bem pelo contrário.
Também não surpreendem algumas reacções feitas de uma mistura de - expostas ou mais ou menos bem camufladas - invejas miudinhas e caricatos despeitos e ridículas e patetas ciumeiras e despudoradas hipocrisias que, todas somadas, não valem sequer a referência que aqui se lhes faz... Igualmente esperadas eram as tentativas de aproveitamentos políticos. Foi assim que, após a chegada da grande notícia e quando alguns ingénuos esperavam que o Ministro da Cultura, no cumprimento das funções que lhe competem, tomasse o primeiro avião para Frankfurt ... eis que, em vez disso, nos entra em casa o Primeiro Ministro falando do evento no mesmo tom e no mesmo jeito que usa utilizar quando se refere à Expo, à "maior ponte da Europa", ao "crescente prestígio de Portugal no Mundo" ... assim como quem diz que o Nobel de Saramago constitui mais um êxito da política do Governo. No plano institucional, a situação foi salva - é justo realçá-lo - pelas declarações sérias, dignas, sentidas do Presidente da República e pela assinalável sensibilidade da Câmara Municipal de Lisboa, pondo de imediato a Cidade a dar os parabéns a Saramago e decidindo homenageá-lo com a entrega da Chave da Cidade.

Justifica-se, ainda, um breve comentário à opção tomada pelo jornal do Vaticano de destapar todos os seus recalcados ódios contra a atribuição do Prémio Nobel a um "inveterado comunista"...É certo que a posição do Vaticano já foi devidamente classificada e qualificada , nomeadamente pelo próprio Saramago (" Gostaria que o Vaticano me explicasse o que é isso de ser comunista inveterado. Talvez queiram dizer coerente. Eu só quero dizer ao Vaticano que prossiga com as suas orações e deixe as pessoas em paz").Mas vale a pena sublinhar o facto de o Vaticano persistir em manter vivo o fogo dos autos de fé - devidamente adaptados aos tempos de hoje, obviamente - e lembrar-lhe que o disparate fundamentalista que produziu contra o Prémio Nobel da Literatura é tão monstruoso como seria, por exemplo, alguém acusar a Igreja Católica de, por divulgar a Bíblia, estar a violentar as consciências dos ateus.

A Festa do Nobel Saramago é uma Festa de todos, é a Festa do nosso contentamento, e está para durar. Exemplo disso foi a reacção das inúmeras pessoas que na terça feira à tarde estiveram na Praça do Município e, de forma simples e comovente, expressaram o seu amor, o seu carinho, a sua admiração por José Saramago. Aquele há-de ter sido um dos tais momentos de que o escritor diz "contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia". "Obrigado, Lisboa. Nem tu sabes o que me deste hoje" - escreveu ele no Livro de Honra da Cidade...
Festa de todos, portanto. Mas também Festa muito especial para os comunistas portugueses que fazem questão de manifestar o seu orgulho por terem como camarada de Partido o grande escritor José Saramago, agora Prémio Nobel da Literatura.


«Avante!» Nº 1298 - 15.Outubro.1998