O Nobel para Saramago
Uma festa para todos


A notícia da atribuição do Nobel a Saramago suscitou uma verdadeira avalanche de reacções, depoimentos, saudações. Se fosse possível fazer um breve balanço, poucos dias após ser conhecida a decisão da Academia Sueca, diríamos que um larguíssimo consenso saudou, tanto em Portugal como no estrangeiro, este coroar do reconhecimento internacional que o escritor já possuía. Em Portugal é uma festa. Para todos (porque não vamos falar aqui de ayatolahs nem das amarelas saudações que mal disfarçam inveja ou desconforto). Festa para os comunistas em particular, embora os comunistas não ousem chamar a si a exclusividades desta alegria que partilham com tantos milhares de leitores em todo o mundo a quem Saramago não pergunta a ideia nem indaga a fé.

Nomes como Jorge Amado e García Marquez felicitam Saramago. Outros, como o anterior Nobel, Dario Fo, juntam-se-lhes. São vozes «à esquerda». Mas outras vozes, como as de Vargas Llosa, ou de Camilo José de Cela também o saúdam. Assim como Humberto Ecco. Isto para falar dos mais famosos e lidos. Não foi apenas nos países mais «próximos» de Portugal e do escritor - Espanha, Itália, Brasil - mas nos outros de expressão portuguesa e na América Latina, e mais «longe» ainda, que esta distinção encontrou um fraternal entusiasmo.

Por cá, e para além da alegria popular que alguns Órgãos de comunicação souberam bem surpreender e de numerosos depoimentos de escritores e artistas, salientam-se as declarações de figuras públicas.

O Presidente da República, Jorge Sampaio, que referiu a «grande satisfação colectiva» que o Nobel trouxe, afirmou: «A atribuição deste prémio é uma afirmação, neste ano, muitíssimo significativa e importante para todos nós, quaisquer que sejam as nossas convicções. Olhamos para esse grande trabalhador da língua portuguesa, esse grande criador, e enviamos-lhe um abraço fraterno por nos ter dado esses milhares de páginas magníficas que tivemos a possibilidade de ler.»

Também a Assembleia da República, cujo Presidente saudou o escritor, aprovou por unanimidade e aclamação a que damos destaque nas páginas 10 e 11 deste número. Por sua vez, o Primeiro Ministro e o Ministro da Cultura também saudaram a atribuição do Nobel a Saramago.

De destacar ainda o depoimento de José Manuel Mendes, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores: «É um momento de profunda alegria para os leitores e amigos do escritor e sobretudo para a literatura portuguesa. A APE, que foi proponente da candidatura de José Saramago ao Nobel, não pode deixar de exprimir todo o seu júbilo. Felicitamos afectuosamente o grande escritor que o mundo já reconhecera e consagrara e saudamos o conjunto dos autores que foi considerado pelo Comité de Estocolmo. Uns e outros são significativos criadores deste universo intraficável que é a escrita nas suas dimensões mais inventivas e renovadoras.»

Entretanto, um pouco por todo o país, muitas autarquias se congratulam. Em especial a Câmara de Lisboa que na madrugada seguinte à atribuição do Nobel, dava os parabéns a Saramago em toda a cidade e recebeu anteontem o escritor nos Paços do Concelho, onde lhe entregou as Chaves da Cidade.

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Saudações comunistas

Milhares de saudações devem ter chegado a Lanzarote, desde quinta-feira passada. De tal modo que a redacção do «Avante!», ao enviar pelo telefone um telegrama a Saramago, não precisou de dizer o endereço. O funcionário esclareceu que já o sabia de cor. Não vamos ocupar-nos de tantas delas que a comunicação social tem vindo a referir. Mas apenas de algumas daquelas, que também foram muitas, que os comunistas lhe enviaram:

«É com grande alegria e emoção que em meu nome e em nome do nosso Partido te envio um grande abraço de parabéns. Hoje é um grande dia para Portugal, para a literatura, a cultura e a língua portuguesa e para os valores que sempre defendeste. É também um grande dia para os militantes do PCP e para todos os "Levantados do Chão".»

«A Comissão Política do Comité Central do PCP saúda vivamente o escritor e o camarada José Saramago pela atribuição do Prémio Nobel da Literatura.
«Escritor de grande mérito artístico e de indiscutível prestígio nacional e internacional, José Saramago é simultaneamente uma figura singular na vida cultural, social e política do nosso País. Membro do PCP desde antes do 25 de Abril tem uma vida indissoluvelmente ligada à defesa da liberdade, da democracia, das grandes causas sociais e políticas dos trabalhadores na luta pela sua emancipação.
«A atribuição, hoje, do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, para além de justamente consagrar um grande escritor e a sua obra, constitui igualmente um grande contributo para uma maior afirmação da literatura de língua portuguesa no mundo e para o reconhecimento do português como língua de referência importante na cultura mundial.
«É com enorme alegria que o PCP, os comunistas, os trabalhadores, os intelectuais, os portugueses vivem este momento.»

O camarada Álvaro Cunhal prestou ao «Avante!» o seguinte depoimento:

«Logo que chegou a notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, falei com ele pelo telefone para Frankfurt.
«Saudei-o e enviei-lhe três abraços.
«Um por ele e pela sua obra que, sendo imaginação, fantasia, sonho e criatividade, conduz, de forma superior em língua portuguesa, às realidades da nossa história passada e contenmporânea, às relações do artista com a própria obra, ao valor da vida quotidiana e à natureza do ser humano na complexidade, riqueza e pobreza das suas contradições, que o ser humano retrata quando cria o seu próprio Deus.
«Outro abraço pela literatura portuguesa e o seu valor universal reconhecido agora na mensagem da obra de Saramago, projectada em todo o mundo.
«Outro, pela alegria que sinto com todos os camaradas do Partido, porque o autor de tão notável obra literária e o portador de tão valiosa mensagem é um camarada nosso, camarada de ontem e de hoje, um camarada de sempre.»

«Caro camarada Saramago
«Interrompemos a nossa reunião semanal da Redacção pelo melhor de todos os motivos: o de saber que, finalmente, te foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Não era sem tempo. Brindámos todos ao evento, em alegria pouco costumeira. A essa alegria de ver que justiça é feita a um trabalho que admiramos junta-se a satisfação de te saber entre nós, nos ideiais, na fraternidade que a tua escrita transparece. E também o orgulho de ver assim distinguida uma voz em Português, a língua em que crescemos, comunicamos e partilhamos com outros, no mundo.
«Por tudo isto estamos contigo, em festa.»

«A Direcção do Sector Intelectual de Lisboa envia-te o mais caloroso e orgulhoso dos abraços, em nome do colectivo a que pertences.
«O reconhecimento universal, hoje confirmado com a atribuição do Prémio Nobel, da excepcional amplidão temática, do fulgor literário, da capacidade de exprimir grandes movimentos históricos, da riquíssima humanidade que caracterizam a tua obra enchem-nos de orgulho pela tua pessoa singular.
«Por alguém que sempre colocou entre os seus mais altor títulos de honra a sua opção de comunista, opção de fundo que é indissociável do fôlego e da grandeza de uma obra onde com tantas vozes se exprime o mais complexo e profundo sentir do seu humano.
«Gostaríamos que este abraço fraternal e colectivo que te enviamos tivesse a dimensão de todos os que sonham e buscam o futuro e em particular de todos os que, nessa busca, abrem caminho com as palavras da língua portuguesa.»

«A Juventude Comunista Portuguesa congratula-se com o facto de o Prémio Nobel da Literatura ter sido este ano atribuído a um escritor português.
«Foi pois com redobrada satisfação que apresentámos os mais sinceros parabéns ao nosso camarada José Saramago. É um prémio que nos enche de orgulho, como portugueses e como comunistas.»

De Norte a Sul, outras organizações do Partido felicitam o escritor e o camarada. Destacamos aqui as que entretanto nos chegaram: a saudação da DORAL que «deliberou manifestar o seu regozijo pela atribuição do Prémio Nobel», «endereçando ao escritor e camarada as mais fraternais felicitações, salientando a alta qualidade ética, estética e os valores humanistas da sua obra». E os «mil abraços de parabéns», enviados, por unanimidade, pela DOR de Castelo Branco, transmitindo a «alegria e satisfação» pela atribuição a Saramago do galardão, realçando «a importância de este prémio ser atribuído à língua portuguesa, a um escritor português e a um homem que lutou e luta contra as injustiças e por um mundo radicalmente diferente».


A «explicação» do Nobel

Ao fim da manhã do dia 8 de Outubro era tornada pública a atribuição do Nobel da Literatura de 1998. E o Secretário permanente da Academia Sueca fazia divulgar um comunicado em que, sucintamente, «explicava» as razões de tal distinção. O texto está longe da prosa de circunstância e, revelando uma rara capacidade de síntese, demonstra uma leitura atenta, aprofundada e inteligente da obras mais significativas do escritor premiado, «o português José Saramago», «prosador oriundo da classe trabalhadora», que «tem visto a sua obra frequentemente traduzida». É essa «leitura» feita pela Academia sueca que aqui propomos:

Manual de Pintura e Caligrafia: um romance, que saiu em 1977, ajuda-nos a entender o que viria a acontecer mais tarde. No fundo, trata-se do nascimento de um artista, tanto do pintor como do escritor. O livro pode, em grande parte, ser lido como uma autobiografia mas, na sua intensidade, encerra também o tema do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada com a queda do regime salazarista tranforma-se numa imagem final portadora de abertura.

Memorial do Convento, de 1982, é o romance que o vai tornar célebre. É um texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica, social e individual. A inteligência e a riqueza de imaginação aqui expressadas caracterizam, de uma maneira geral, a obra saramaguiana. A ópera Blimunda, do compositor italiano Corghi, baseia-se neste romance.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, é um dos pontos altos da sua produção literária. A acção passa-se formalmente em Lisboa, no ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente de irrealidade superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é acentuado pelas repetidas visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a casa da personagem principal (que é extraída da produção pessoana) e das suas conversas sobre os condicionalismos da existência humana. Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro.

Em A Jangada de Pedra, publicada em 1986, o escritor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direcção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe um sem número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os actores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao serviço da sabedoria.

Existem todas as razões para também mencionar História do Cerco de Lisboa, de 1989, um romance sobre um romance. A história nasce da obstinação de um revisor ao acrescentar um não, um estratagema que dá ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo tempo, oferece ao autor um campo livre à sua grande imaginação e alegria narrativa, sem o impedir de ir ao fundo das questões.

O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, romance sobre a vida de Jesus, encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de atenção sobre grandes questões. Deus e o Diabo negoceiam sobre o Mal. Jesus contesta o seu papel e desafia Deus.

Um dos romances destes últimos anos aumenta consideravelmente a estatura literária de Saramago. É publicado em 1995 e tem como título Ensaio Sobre a Cegueira. O autor omnisciente leva-nos numa horrenda viagem através do interface que é formado pelas percepções do ser humano e pelas camadas espirituais da civilização. A riqueza efabulatória, excentricidades e agudeza de espírito encontram a sua expressão máxima, de uma forma absurda, nesta obra cativante. «Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.»

O último dos seus romances, Todos os Nomes, sairá este Outono, em tradução sueca. Trata-se de uma história sobre um pequeno funcionário público da Conservatória dos Registos Centrais de dimensões quase metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e segue a sua pista até ao seu trágico final.

A arte romanesca multifacetada e obstinadamente criada por Saramago confere-lhe um alto estatuto. Em toda a sua independência Saramago invoca a tradição que, de algum modo, no contexto actual, pode ser classificada de radical. A sua obra literária apresenta-se como uma série de projectos onde um, mais ou menos, desaprova o outro mas onde todos representam novas tentativas de se aproximarem da realidade fugidia.


Bem-vindo, José Saramago!

Muita emoção e cravos vermelhos deram o tom à calorosa recepção que a multidão concentrada na Praça do Município reservou a José Saramago, regressado na passada terça-feira a Lisboa.

No aeroporto, o escritor foi recebido pelo primeiro-ministro, António Guterres, assim como pelo presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, estava acompanhado de João Amaral, presidente da Assembleia Municipal, e dos vereadores António Abreu, Rui Godinho, e Maria Calado.
Já nos paços do concelho, José Saramago teve um breve encontro com uma delegação do PCP, constituída por Carlos Carvalhas, secretário-geral do Partido, José Casanova e António Andrez, membros da Comissão Política. Neste encontro estiveram ainda alguns amigos do escritor galardoado.

Seguiu-se a cerimónia de entrega das Chaves da Cidade, que decorreu no Salão Nobre da Câmara que estava completamente à cunha, durante a qual usaram da palavra João Soares, João Amaral e no final José Saramago, que acedeu a assinar o livro de honra da cidade, onde escreveu: «Obrigado, Lisboa. Nem tu sabes o que me deste hoje».

Ontem, quando esta edição estava a ser impressa, José Saramago era homenageado no Centro de Trabalho Vitória, pelas 16.30 horas, após o que seguiu para a vigília promovida pela CGTP-IN no Terreiro do Paço, contra o "pacote laboral". O escritor quis manifestar o seu apoio e solidariedade à luta dos trabalhadores portugueses contra as alterações da legislação laboral. Ainda ontem, realizou-se a homenagem nacional no Centro Cultural de Belém. Amanhã o escritor estará no Porto, no Encontro de Literaturas Ibero-Americanas.


«Avante!» Nº 1298 - 15.Outubro.1998