Despreocupação,
silêncio
ou
capitulação?
Por Jorge
Pires
Membo da Comissão Política do CC do PCP
As duas maiores empresas nacionais dos sectores automóvel e naval, respectivamente a Autoeuropa e a Lisnave, foram nos últimos dias notícia. Não por razões a que já estamos habituados, como as tentativas de imporem mecanismos nas relações laborais que conduzam ao aumento dos níveis de exploração dos trabalhadores, às tentativas para retirarem direitos, ou mesmo como aconteceu recentemente à porta da Autoeuropa, onde a pedido da administração a GNR interveio para impedir a distribuição do documento do PCP sobre o pacote laboral. Não: desta vez, na génese das notícias está a decisão deliberada de incumprimento por parte das duas empresas de obrigações assumidas perante o Estado português.
Ambas as empresas têm outros aspectos em comum: estão as duas localizadas na Península de Setúbal onde a taxa de desemprego se situa nos 12,5% (o dobro da média nacional), no seu conjunto contribuem com cerca de 5.500 postos de trabalho directos e mais de 3.000 indirectos e receberam as duas importantes apoios financeiros, quer do Estado português, quer da C.E..
A Autoeuropa é ainda uma das empresas responsáveis pelo crescimento do valor das exportações portuguesas nos últimos anos.
Por tudo isto, seria
normal que o ministro da economia viesse a terreiro, de forma
decidida, mostrar que o governo português não tolerará
incumprimentos de compromissos assumidos pelas duas empresas.
Estão porém enganados aqueles que pensam que este ministro pode
agir assim. Se relativamente à Lisnave mantêm até hoje um
rigoroso silêncio, no caso da Autoeuropa mostrou uma
comprometedora despreocupação, contrastando com outros momentos
sobretudo quando se refere a pequenas e médias empresas em que
aparece com uma postura mais decidida por vezes até arrogante.
As mais do que previsíveis consequências, caso se confirmem as
noticias vinculadas na Comunicação Social, para a economia
nacional, para o aparelho produtivo e sobretudo no plano do
emprego, exigiam muito mais do que declarações patéticas ou
silêncios.
Como muito bem sabe
o Ministro, a Autoeuropa é um investimento conjunto da Ford e da
Volkswagen com custos na ordem dos 450 milhões de contos, que
recebeu de incentivos mais de 130 milhões de contos através do
FEDER, de fundos para a formação profissional e isenções
fiscais, para além dos 150 milhões previstos para
infra-estruturas fundamentais para o funcionamento da empresa
pagos com o dinheiro de todos nós.
Em contrapartida, a Autoeuropa obrigava-se a atingir, em 97, 4671
postos de trabalho após a entrada em funcionamento do terceiro
turno (hoje não atinge ainda os 4.000 nem implementou o terceiro
turno) e a produzir 180.000 carros/ano, bem como o compromisso de
desenvolver todos os esforços à continuidade da sua produção
no período que medeia entre 2001 e 2014.
Precisamente um ano depois do timing previsto, longe de ter
atingido objectivos assumidos, a Ford vem anunciar não as
medidas para o seu cumprimento mas sim a saída da Autoeuropa e a
venda dos 50% que tem no capital social da empresa à Volkswagen.
Não estamos nós
perante um cenário em todo semelhante ao da Sodia (Ex. Renault),
em que o governo capitulou face aos interesses de outra
multinacional do sector automóvel?
Será que os trabalhadores desta empresa, na sua maioria jovens
chegados ao mercado de trabalho pela primeira vez, não fazem
parte do universo das pessoas que de forma sistemática o
primeiro ministro afirma estarem em primeiro lugar nos objectivos
da intervenção do Governo?
Não estamos a assistir a uma declaração antecipada de
encerramento da empresa em 2001?
O futuro nos dirá quais as respostas para estas interrogações,
mas a experiência diz-nos que os indícios não são de modo
nenhum animadores e que a situação exige em primeiro lugar do
governo português uma grande firmeza na exigência do
cumprimento dos compromissos assumidos, mas também dos
trabalhadores da empresa e das suas organizações de classe a
necessária mobilização para a luta na defesa dos seus
interesses.
Até agora, as únicas manifestações conhecidas de preocupação, no plano institucional, vieram dos grupos parlamentares do PCP na A.R. e no P.E., este último questionando a Comissão sobre o cumprimento das condições contratuais que levaram ao co-financiamento comunitário e, também sobre as medidas políticas concretas que pensa tomar contra os dois parceiros da empresa no caso de incumprimento por estes dos compromissos assumidos.
Mas se o anúncio de
que a Ford tinha decidido abandonar a Autoeuropa é preocupante,
não o é menos a denúncia pública feita pela Comissão
Coordenadora das CTs da Industria Naval, de que a Lisnave
não tinha concorrido para a concessão, por um novo período, da
exploração do Estaleiro da Rocha, podendo com esta decisão
levar ao encerramento do mesmo e à extinção de mais de três
centenas de postos de trabalho.
Tudo isto acontece um ano depois de concluído mais um processo
de reestruturação da empresa, à custa de importantes recursos
financeiros provenientes dos dinheiros públicos (mais de 60
milhões de contos) e da constituição de uma empresa pública
(Gestnave) para onde foram transferidos os mais de 1.000
trabalhadores cujos postos de trabalho foram extintos. Ou seja,
os Mellos ficaram com a produção e os lucros e o Estado ficou
com os prejuízos e os desempregados.
Nessa altura o Estaleiro da Rocha era considerado necessário
para a empresa. Então o que aconteceu durante o último ano para
deixar de ser?
A resposta aí está em grande medida confirmada pelo próprio
Secretário de Estado da Indústria, quando afirma que se discute
neste momento no Ministério da Defesa a possível privatização
do Estaleiro do Arsenal do Alfeite, mas também a confirmação
de que se pretende criar uma empresa paralela aos Estaleiros de
Viana do Castelo invocando a necessidade de um parceiro
estratégico com o objectivo claro de privatização destes.
Não é por isto difícil concluir que a estratégia do grupo
Mello passa pela saída da Rocha e a entrada no Arsenal e nos
estaleiros de Viana, não esquecendo que estão perspectivados
investimentos de 500 milhões de contos para a reconversão da
frota da Marinha de Guerra.
Pergunta a
Coordenadora das CTs da Industria Naval no seu comunicado
se não seria lógico, tratando-se de dinheiros públicos, que
fossem as empresas públicas assumir a renovação da frota dado
o seu potencial de experiência neste tipo de embarcações e
tecnológico?
Esta não é porém a lógica do governo que se guia pelos
critérios do neo-liberalismo e que na essência das suas
políticas está uma aversão desmedida a tudo o que é público.
Não estamos perante a perspectiva duma nova reestruturação do
sector, semelhante a vários anteriores que levaram a que este
sector perdesse entre 1984 e 1997 só no distrito de Setúbal
mais de 15.000 postos de trabalho?
Este é apenas mais um episódio duma novela que começa ainda
antes do 25 de Abril e que conta a história das relações entre
a família Mellos e o PS, no quadro da reorganização deste
grande grupo económico. Episódios da nossa história recente
passados no sector naval, na Quimigal, com o PDM de Almada, etc.,
são bem elucidativos desta relação e confirmam as nossas
preocupações face ao futuro do sector da construção e
reparação naval em Portugal.
É neste quadro que o Ministro da Economia irresponsavelmente se diz despreocupado no caso da Autoeuropa e se remete ao silêncio face às intenções da Lisnave. Eu digo que esta postura configura antes de mais uma clara opção de capitulação perante os interesses destes dois grandes grupos económicos.