A proposta do Governo sobre trabalho a tempo parcial
Ler para crer


Das propostas de lei que compõem o pacote laboral do Governo PS, a mais importante é a que «define o regime jurídico do trabalho a tempo parcial e estabelece incentivos à sua dinamização» - segundo os termos utilizados no documento entregue em Agosto na Assembleia da República e que em breve deverá ser submetido à apreciação pública.

Por entre afirmações de intenções (geralmente, no que toca à salvaguarda de direitos dos trabalhadores) e ressalvas de obrigações (feitas para não ferir as patronais susceptibilidades), a letra do pretendido diploma mostra, preto no branco, quem iria ficar favorecido e agradado se a proposta se tornasse lei. É ler, para crer.
Um capítulo introdutório, designado «Exposição de motivos», estende-se ao longo das duas primeiras páginas, mas só as três primeiras linhas são dedicadas a explicar as razões que justificam a iniciativa governamental: «A regulamentação da prestação de trabalho a tempo parcial, modalidade contratual de crescente utilização nacional e internacional, visa sobretudo melhorar o mercado do emprego e reduzir o desemprego, com a devida salvaguarda dos direitos dos trabalhadores.» E mais não entenderam os autores que fosse necessário...

É importante sabermos do que estão a falar, e isso esclarece-se no artigo 1º, dizendo que «considera-se trabalho a tempo parcial o que corresponda a um período normal de trabalho semanal inferior ao praticado por trabalhadores a tempo completo numa situação comparável», ou seja, «quando prestam o mesmo ou idêntico tipo de trabalho no mesmo estabelecimento, noutro estabelecimento da mesma empresa e com a mesma actividade, ou em estabelecimento de idêntica dimensão no mesmo ramo de actividade, ou, ainda, num estabelecimento do mesmo ramo de actividade, segundo a indicada ordem de precedência». É assim mesmo: tudo igual, mas com diferentes compromissos quanto ao tempo de trabalho. A diferença, recorde-se, ficou justificada nas primeiras três linhas. Mais esclarece o Governo que, «se o período normal de trabalho não for igual em cada semana, será considerada a respectiva média num período de quatro meses, ou período diferente estabelecido por convenção colectiva de trabalho».

Adiante, assevera-se que os trabalhadores a tempo parcial não podem ter «um tratamento menos favorável que os trabalhadores a tempo completo numa situação comparável», mas logo fica aberta uma ressalva: «a menos que um tratamento diferente seja justificado por razões objectivas», as quais «poderão ser definidas por contratação colectiva».

O trabalho a tempo parcial «pode, salvo estipulação em contrário, ser prestado em todos ou alguns dias da semana, sem prejuízo do descanso semanal».

A proposta de lei já prevê a possibilidade de trabalho extraordinário a tempo parcial: «O limite anual de horas de trabalho suplementar para fazer face a acréscimos eventuais de trabalho, aplicável a trabalhador a tempo parcial, é de 80 horas por ano ou o correspondente à proporção entre o respectivo período normal de trabalho e o de trabalhador a tempo completo em situação comparável, quando superior.» Mas, «mediante acordo entre o trabalhador e a entidade empregadora, o trabalho suplementar pode ser prestado, para fazer face a acréscimos eventuais de trabalho, até 200 horas por ano».


Três anos?

Em vários momentos da proposta de lei é referido um prazo de 36 meses como limite... Mas o que está escrito é que «o trabalhador a tempo parcial pode passar a trabalhar a tempo completo, ou o inverso, a título definitivo ou por período determinado, mediante acordo escrito com a entidade empregadora». Vá-se lá saber por que foi que o legislador-proponente resolveu esconder assim, sob a capa de ou o inverso, o objectivo principal do diploma: o incentivo ao trabalho a tempo parcial!

Pela primeira vez, o «máximo de três anos» é apontado como o período em que o trabalhador que esteja a tempo completo e aceite passar para tempo parcial tem garantido o retorno à situação inicial.

Os prazos só regressam ao texto lá para as páginas onze - onde é proposta a regulamentação da duração dos benefícios concedidos às empresas – e treze (sobre a vigência dos incentivos). Mesmo assim, passados os primeiros três anos, «os incentivos são ainda aplicáveis em casos de passagem de trabalho a tempo completo para tempo parcial e de admissão de trabalhadores, desde que previstos em convenção colectiva reguladora da organização do tempo de trabalho, que assegure a liberdade de celebração de contratos de trabalho a tempo parcial».

Benefícios à parte, «os efeitos decorrentes das relações jurídicas constituídas ao abrigo do regime de incentivos previsto no presente diploma mantêm-se para além dos prazos estabelecidos no presente artigo».


Liberdade?

Está garantida! «A liberdade de celebração de contratos a tempo parcial não pode ser excluída por aplicação de disposições constantes de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho vigentes na data da entrada em vigor deste diploma.» E, para que fique ainda mais clara a intenção do governamental proponente-legislador, a disposição final conclui: «Serão apreciadas e, sempre que possível, eliminadas, no quadro da negociação colectiva, as disposições que dificultam ou limitam o acesso ao trabalho a tempo parcial.»

Ainda a admirar as assinaturas do primeiro-ministro e dos ministros das Finanças, do Trabalho e dos Assuntos Parlamentares, que juram tudo isto ter sido «visto e aprovado em Conselho de Ministros de 16 de Julho de 1998», o leitor da proposta de lei continua a debater-se com a interrogação que as primeiras três linhas do documento não esclareceram: por que motivos é necessário impor assim o trabalho a tempo parcial?

Voltando atrás na proposta, chega-se ao artigo 7º, na página com o mesmo número, que define os incentivos à alteração do tempo de trabalho. O trabalhador que aceite passar do tempo completo para o tempo parcial verá reduzida a taxa contributiva que lhe é aplicável, para 6 por cento, durante 36 meses. E pronto. Seguem-se três artigos com os incentivos concedidos às empresas.

A contratação de trabalhadores para «partilha de postos de trabalho» deveria merecer, por um período de três anos, dispensa do pagamento de contribuições, no caso de contratos sem termo com jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração. Pelo mesmo período, a contratação a termo de trabalhadores destas categorias seria premiada com a redução de 50 por cento da taxa contributiva; a contratação, a tempo parcial, de outros trabalhadores seria premiada com reduções de 50 por cento (contratos sem termo) ou de 25 por cento (a termo). Os incentivos repetem-se nos casos em que a contratação a tempo parcial seja determinante da criação de postos de trabalho.

O artigo 10º regula os apoios financeiros à contratação a tempo parcial.

«Senhores patrões...»

Todo o artigo 6º, com as cinco alíneas, ocupa quase uma página com aquilo que pode ser entendido como deveres das empresas. Discretamente intitulado «Tempo de trabalho e dever de informação», diz que, «sempre que possível, os empregadores devem tomar em consideração: a) Os pedidos de mudança dos trabalhadores a tempo completo para um trabalho a tempo parcial que se torne disponível no estabelecimento; b) Os pedidos de mudança dos trabalhadores a tempo parcial para um trabalho a tempo completo, ou de aumento do seu tempo de trabalho, se surgir essa possibilidade; c) o fornecimento, em tempo oportuno, de informação sobre os postos de trabalho a tempo parcial e a tempo completo disponíveis no estabelecimento, de modo a facilitar as mudanças que se referem nas alíneas a) e b); d) As medidas destinadas a facilitar o acesso ao trabalho a tempo parcial em todos os níveis da empresa, incluindo os postos de trabalho qualificados e os cargos de direcção, e, se pertinente, as medidas destinadas a facilitar o acesso dos trabalhadores a tempo parcial à formação profissional, para favorecer a progressão e a mobilidade profissionais; e) O fornecimento, aos órgãos existentes de representação dos trabalhadores, de informações adequadas sobre o tempo parcial na empresa».

Mesmo assim, será sempre que possível e se não causar grande incómodo. Só falta escrever, preto no branco, o respeitoso cumprimento que se respira em todo este frete legislativo do Governo: «senhores patrões». — Domingos Mealha

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«E eis que aí temos de novo um pacote laboral que faz inveja aos pacotes do Governo do PSD, um pacote que perpetua formas de exploração do início do século.
«Que outra caracterização se pode fazer da proposta de lei sobre trabalho a tempo parcial?
«Com tal diploma, nenhum trabalhador a tempo completo está seguro. Ele pode ser colocado em regime de part-time até três anos, a trabalhar as horas que a entidade patronal entender e a ganhar apenas o correspondente às horas trabalhadas. Isto é: verá o seu salário diminuído, o seu subsídio de férias reduzido, o seu subsídio de Natal minguado, o seu subsídio de desemprego comprimido. Podem contrapor que tal só acontecerá com o acordo escrito do trabalhador. Mas, se atentarmos no ambiente de repressão que se vive nas empresas, saberá a bem pouco essa garantia do trabalhador.»
«Quem sofre também com isto são os jovens que entram pela primeira vez no mercado de trabalho, que dificilmente conseguirão um trabalho a tempo completo. E são também as mulheres, como o demonstram os dados estatísticos sobre trabalho a tempo parcial.
«Esta é uma receita que na Europa de Maastricht se quer vulgarizar, proclamando-se as virtudes da mesma com slogans próprios dos piores filmes das televendas. Com uma dessincronização evidente em relação à realidade, diz-nos o Eurostat: "Most are happy that way", "A maioria é feliz assim». Como se a insegurança no seu vínculo laboral, o trabalho sem direitos, o trabalho que empobrece criando novos excluídos, desse de facto a felicidade.
De facto, quem fica feliz é o grande patronato, o que reclama a mobilidade interna e externa dos trabalhadores, o que vive da instabilidade das famílias dos trabalhadores, aquele que acusa a rigidez dos vínculos laborais de não permitir a competitividade e a rentabilidade das empresas, mas vai impondo pelo terror a flexibilidade e os despedimentos ilícitos, sem aumentar com isso a competitividade.»

(Odete Santos, deputada do PCP, em intervenção na AR dia 7 de Outubro)

«Avançando com a ideia que o trabalho a tempo parcial deixará mais tempo livre, na prática, com a redução do salário e com o nível de remuneração existente no nosso país, se esta lei fosse adiante, para garantir um nível de vida minimamente aceitável, muitos trabalhadores seriam empurrados para dois ou três trabalhos a tempo parcial.
«Tal situação implicaria mais ocupação de tempo e desorganização da vida pessoal, teria implicações evidentes na diluição do sentimento de ligação a um colectivo de trabalhadores a uma empresa, a um sector profissional e consequentemente ao sindicato e condicionaria fortemente a sua disponibilidade de participação e militância social e política.»

(Francisco Lopes, da Comissão Política do PCP, no encontro nacional de quadros do PCP, 3 de Outubro)


«Avante!» Nº 1298 - 15.Outubro.1998