Comandante
seja bem vindo a Portugal!

Por Miguel Urbano Rodrigues


Pela primeira vez Portugal recebe Fidel Castro. Como nas anteriores Cimeiras Ibero-Latino Americanas será ele o pólo da atenção popular e mediática. A seu lado os demais chefes de Estado e de Govêrno esbatem-se; é diferente a sua dimensão.

Qualquer paralelo com este ou aquele participante no Encontro do Porto seria descabida.
Porquê?
A intervenção de Fidel na história produziu-se em múltiplas frentes em combates de natureza tão diferente que exigiam qualidades aparentemente incompatíveis na mesma pessoa. Fidel foi (e é) simultaneamente um homem de estado, um estratego militar, um ideólogo, um revolucionário, e um lider de massas. Em cada um desses papeis teve um desempenho incomparável.
Evito sempre o emprego da palavra génio para tentar definir alguém, porque ela afasta, quase desumaniza. Mas é dificil encontrar um qualificativo que possa abranger a excepcionalidade abrangente e contraditória de Fidel. O jovem revolucionário que viu em Martí o autor intelectual do assalto a Moncada e o Presidente de Cuba que afirma hoje não conhecer para a humanidade outro modelo que não seja o da globalização socialista estão unidos por um caminho marcado por uma fascinante diversidade e uma permanente coerência.
Quanto mais se conhece a vida e a obra de Fidel, maior é a admiração nascida da consciência de que ele procurou sempre com tenacidade superar o possivel aparente nas grandes tarefas a que se propôs.
Comandante de guerrilha por um circunstancialismo histórico, desenvolveu como militar atípico um talento incomum. Em dois anos, ele e um punhado de companheiros destruiram um exercito profissional de dezenas de milhares de homens, armado e financiado pelos EUA. O que aconteceu não se explica pela razão; regista-se como epopeia sem precedentes que faz lembrar as dos heróis de Homero.
Em Cuba, que fora bordel e quinta dos EUA, surgiu o primeiro estado socialista das Américas. Mais do que o balanço de transformações sociais que humanizaram a vida do povo, dignificando-a, o que suscita espanto e respeito é a resposta vitoriosa ao desafio, isto é, a defesa da revolução.
Outra vez, o impossivel fez-se possivel. Nove presidentes dos EUA, apoiados e empurrados pelo Congresso e pelo Pentágono, desenvolveram nos últimos 40 anos um esforço ininterrupto e intenso para aniquilar a Revolução cubana e reconduzir a Ilha Socialista à sua antiga condição de semi-colónia. Recorreram ao terrorismo, à agressão armada (Playa Girón)à guerra quimica e bacteriológica, a um bloqueio que é o mais prolongado e cruel da história.
Em l989,quando a política de Gorbatchev começava a arrastar a pátria de Lenine para o abismo, Fidel lançou o alerta: se algum dia a URSS desaparecesse, Cuba não capitularia. A sua advertencia foi definida em Washington como brado de desespero de um irresponsãvel. Entretanto, a URSS desagregou-se e o capitalismo foi ali implantado.
E Cuba resistiu.

Transcorreu quase uma decada. O bloqueio foi intensificado. O Congresso dos EUA aprovou uma Emenda e uma Lei - a Torricelli e a Helms Burton - que violam acordos firmados por Washington e impõem a extraterritorialidade para a legislação norte americana, tripudiando sobre principios do direito internacional universalmente aceites.
Os prejuizos materiais de Cuba resultantes do cerco económico ultrapassam já 60 mil milhoes de dólares (aproximadamente dez mil milhões de contos). Mas a Ilha Socialista não cede.
Não cabe aqui definir a ideologia cubana. Mas é transparente que o chamado marxismo-martiano -filho da fusão na luta do materialismo dialéctico com o eticismo de Martí, inseparável de uma concepção idealista da história - contribuiu decisivamente para que num pequeno país do Terceiro Mundo, cercado e amaldiçoado pelo mais poderoso e rico império contemporaneo, o socialismo, destruido na Russia, tenha sobrevivido e demonstre dia após dia, a sua superioridade sobre o capitalismo.
O povo cubano, como sujeito da história, é, obviamente, o herói colectivo dessa prodigiosa saga. Subestimar nela o papel de Fidel implicaria, entretanto, a incompreensão da luta revolucionária. Não haverá muitos casos similares em que o factor subjectivo tenha contribuido tao decisivamente no caminhar de um povo para o rumo da história.
Eu sei que nos próximos dias o sistema mediático desinformativo da sociedade portuguesa bombardeará o nosso povo com calúnias e boatos, apresentando de Fidel uma imagem falsa e até grotesca. Mas esse cacarejar perverso, pouco inteligente, não terá o poder de mudar a realidade. A história náo oferece muitos exemplos de um dirigente como Fidel Castro cuja relação com o seu povo seja tao harmoniosa,intima e sólida. Os rótulos de dinossauro e ditador não apagam a evidência: o afecto e a admiração profunda dos cubanos pelo combatente revolucionário, pelo governante, pelo humanista.
Fidel, contrariamente ao que supõem milhões de portugueses, não intervem hoje praticamente nas tarefas de governo. A estratégia que levou à recuperação económica e à retomada do crescimento do PIB foi no fundamental concebida por Carlos Lage, o secretário executivo do Conselho de Ministros e por uma brilhante equipa de companheiros seus.
Fidel tem um enorme orgulho nas gerações que a Revolução formou. É graças a essa ente que a Revolução, fiel aos principios, sobrevive e resiste.
A intervenção de Fidel nas grandes decisões manifesta-se de multiplas maneiras. Os discursos que pronuncia, por vezes inesperados, têm quase sempre um alto conteudo ideológico. Alguns são documentos políticos que visam objectivos estratégicos (visita do Papa, crise dos balseros, etc). Outros traduzem a sua preocupação permanente com o destino da humanidade ameaçada pela irracionalidade neoliberal. Recordo concretamente uma intervençáo feita de improviso como quase todas, em que conseguiu numa linguagem muito simples tornar transparente o funcionamento dos mecanismos, no jogo alucinatório da especulação bolsista, que haviam desencadeado a primeira fase da crise na Asia Or iental. em l997.
Fidel é incapaz de conceber a defesa da Revolução e das suas conquistas desligando-as da luta global da humanidade. À globalização capitalista imperial, comandada pelos EUA, que coloca em perigo a própria continuidade da vida no planeta, contrapõe a globalização da solidariedade, que somente poderá ter cores socialistas.
Aos que perguntam como será o percurso, que tipo de transição admite como possível, responde apenas que é cedo para esboçar cenários. Não acredita, porém, que a história se repita com revoluções clássicas como a Francesa ou Russa de Outubro de l9l7. «Nao será-as palavras são suas-mediante as armas. A arma que vai derrotar o sistema serão as crises, mas para essas crises os povos, as massas têm de estar preparados».
Sendo a globalização o tema principal da Agenda da Cimeira do Porto, Fidel erguerá mais uma vez a sua voz para condenar a sacralização irracional do mercado, a apologia do mercado sem rosto humano, engrenagem que carrega em si mesma os germes da sua propr ia destruição.
Num mundo em que é esmagador o peso das 39 mil transnacionais cujos tentáculos cobrem hoje a Terra , Fidel não esconde uma angustiada preocupação com «necessidade de salvar em primeiro lugar o planeta onde vivemos, a necessidade imperiosa de evitar que a humanidade caia sob a tirania de uma potencia unipolar disposta a varrer a cultura acumulada durante milénios por diferentes povos».
É dificil, repito, destacar o que faz de Fidel um humanista que não se ajusta a qualquer modelo preexistente.
Volodia Teitelboim, o grande escritor latinoamericano, que foi secretário-geral do Partido Comunista do Chile, afirmou um dia numa entrevista a uma compatriota sua que identificava em Fidel Castro o homem «mais completo» do nosso tempo. E acrescentou: se os norteamericanos elegessem um dia «um presidente com l0% da inteligência de Fidel que grande democracia seriam os EUA».
Creio que Volodia, sempre comedido no uso das palavras, não exagerou.
Os portugueses que permanecem fieis ao ideário de Abril, e são muitos, terão agora a oportunidade de saudar esse homem irrepetível.

Comandante, seja benvindo a Portugal!


«Avante!» Nº 1298 - 15.Outubro.1998