Irlanda
do Norte à espera da Paz (2)
Apesar de ser reconhecido pela maioria dos protagonistas de não se tratar de um "Acordo de Paz", no sentido em que além de calar as armas e ponha fim à violência e restabeleça a normalidade há muito perdida, quase todos são unânimes em reconhecer que o texto assinado em Stormont tem a virtude de colocar à discussão os principais temas cuja ultrapassagem é indispensável à resolução do conflito.
O lado nacionalista
prefere valorizar a questão da igualdade e o estabelecimento de
organismos executivos conjuntos com o governo irlandês, que no
seu entender abrem a porta à reunificação da ilha, enquanto a
parte unionista enaltece a deposição das armas por parte dos
grupos armados e o reconhecimento "de facto" da Irlanda
do Norte como parte integrante do Reino Unido.
O Acordo teve o mérito de deixar toda a gente satisfeita e ao
mesmo tempo comprometida. Gerry Adams, o líder do Sinn Fein,
garante que ainda viverá numa Irlanda unida, ao mesmo tempo que
é acusado pelos sectores republicanos mais intransigentes de ter
hipotecado definitivamente as aspirações nacionalistas. Por seu
turno, os dirigentes unionistas, como o primeiro-ministro eleito
David Trimble, garantem que o Acordo confirma inequivocamente a
pertença da província ao Reino Unido, enquanto os mais radicais
o acusam de "trair o povo do Ulster".
Quanto ao desfecho final é extremamente difícil e arriscado
fazer prognósticos, para mais se se tiver em consideração
anteriores esforços de paz que acabaram por descarrilar, regra
geral por acção de determinados sectores unionistas.
A crescente insistência de Trimble na deposição das armas do
IRA como condição para o Sinn Fein ter acesso aos postos
ministeriais a que obteve direito nas urnas, é o último caso
que ameaça fragilizar o processo de paz. O líder unionista
recorre aqui à estratégia bem sucedida há dois anos quando,
após condicionar o avanço das negociações à deposição de
armas pelo IRA, levou a organização republicana a romper o
cessar-fogo que declarara e protelou quaisquer desenvolvimentos.
Apesar das diferenças entre as duas situações (o governo
britânico não está dependente do apoio parlamentar dos
partidos unionistas e a própria dinâmica que o processo
entretanto adquiriu), não deixa de ser possível um novo
tropeção. A obstinação de Trimble contraria a letra do Acordo
(que prevê um prazo de dois anos para a entrega das armas) e é
contestada pelos próprios grupos paramilitares lealistas.
No entanto, o seu comportamento é ilustrativo de como o caminho
para a paz é sinuoso. Por um lado o líder do UUP está sujeito
a fortes pressões internas e tem que demonstrar que não está a
ceder nem a trair os seus. De um ponto de vista mais político,
Trimble tem que dar resposta às crescentes ameaças de
formação de novos partidos unionistas em torno dos partidos
radicais e de muitos dissidentes e descontentes do seu próprio
partido.
Por outro lado, o que Trimble faz é uma reacção
"típica" unionista, que poderia ser descrita como a
estratégia das "trincheiras", em que cada vez que são
confrontados com um novo avanço, ou cedência que tenham que
fazer, os líderes unionistas "escolhem" um
cavalo-de-batalha ao qual se agarram e com base no qual tentam
enfraquecer o adversário: foi assim com a libertação de
prisioneiros previstas no Acordo, com a continuação da
aplicação de "castigos" por parte do IRA para
argumentar que os republicanos desrespeitavam o cessar-fogo ou
com a exigência do Sinn Fein declarar que a guerra acabou. Tudo
exigências unionistas que não foram atendidas mas que, se não
"mataram", pelo menos "moeram" o processo.
Apesar de a experiência recente mostrar que estes impedimentos
acabam por ser temporários, não é de subestimar a
possibilidade de se constituírem em verdadeiras ameaças.
Mudam-se os tempos...
Lançando um olhar
sobre os últimos 30 anos da Irlanda do Norte e os
desenvolvimentos que a situação foi registando, não deixa de
ser interessante tentar perceber como é que, pelo menos
aparentemente, nos últimos três anos se conseguiu caminhar tão
depressa em tão pouco tempo na direcção da paz. O que é que
permitiu o desbloquear da situação? Além de, provavelmente,
não haver uma causa única, e mesmo as aí as opiniões
divergiriam, talvez o mais razoável seja tentar encontrar uma
explicação numa súmula de diferentes fenómenos que tenham
contribuído para a conjugação de factores actual. Do lado
republicano é apontado como principal motivo a tomada de
consciência por ambos os contendores (IRA e governo britânico)
de que uma vitória militar seria impossível e a decisão
iniciada há alguns anos pelo movimento republicano em direcção
a uma maior politização da sua luta, nomeadamente através da
participação em actos eleitorais, sem no entanto abdicar da
luta armada. Alguns unionistas sublinham a perda de interesse
estratégico e económico do Reino Unido em relação à Irlanda
do Norte: era na Irlanda do Norte que se encontravam algumas das
principais estações de rastreio de submarinos da NATO. Alguns
observadores externos preferem valorizar a mudança de atitude de
Londres, que pretende ver-se livre de uma tão incómoda
"pedra no sapato", que se tornou num autêntico
sorvedouro de dinheiro, meios militares e prestígio. Para mais
quando o IRA demonstrou que tinha capacidade de atacar na
própria capital britânica com a realização de atentados no
coração financeiro da cidade, a City, que sem causare vítimas
provocaram prejuízos de milhões de libras. Num plano mais geral
há quem refira o processo de reorganização constitucional que
o Reino Unido atravessa, com a concessão de maior autonomia à
Escócia e a Gales, e em que a Irlanda do Norte poderia ter o seu
estatuto alterado.
Num aspecto toda a gente está de acordo: toda a população da
Irlanda do Norte está cansada e saturada de tantos anos de
instabilidade e de uma violência cega e implacável. Este
poderá ser, doravante, um dos principais garantes de sucesso do
processo de paz, esta vontade de normalidade que nem a
brutalidade do atentado de Omagh foi capaz de pôr em causa.
Como aprender a viver juntos
O desbravar do
caminho para a paz terá que passar pela capacidade dos
intervenientes - que neste caso é praticamente toda a
população da Irlanda do Norte -, conseguirem transportar e
aplicar no seu dia-a-dia as pretensões expressas num Acordo
cozinhado pelos políticos e ratificado pela esmagadora maioria
da população. Muito terá que ser feito até que qualquer
cidadão, seja católico ou protestante, se possa deslocar
livremente pela sua cidade sem arriscar a vida por atravessar o
bairro "errado". Até que as crianças deixem de
crescer sem nunca terem conhecido ninguém da outra comunidade.
Um primeiro passo foi dado este Verão, em Derry, com o
estabelecimento, pela primeira vez, de um acordo entre os
protestantes que pretendiam realizar a sua marcha anual e os
residentes da área católica em causa. Pequenos passos, em que
ambos os lados terão que aprender a ceder um pouco sem que
sintam que isso significa a derrota ou a rendição. As ordens
protestantes perceberem que não podem fazer o que querem; a
polícia implementar, pela força se necessário, decisões que
desagradem quer a católicos quer a protestantes; os católicos
aceitarem que os outros têm direito às suas tradições e
celebrações.
A questão da reconciliação começa a ser timidamente levantada
por alguns, como aspecto indispensável do processo. Apesar de
não saberem muito bem como o fazer, ninguém nega a
inevitabilidade de se ter que discutir os erros, os crimes e os
abusos que toda a gente cometeu. O IRA que bombardeou e matou
indiscriminadamente, os paramilitares lealistas que tinham como
estratégia o assassinato arbitrário de católicos, as forças
de segurança, exército e polícia, que torturaram e
assassinaram inocentes, entre os quais crianças. "Toda a
gente tem as mãos sujas de sangue" diz um dirigente do Sinn
Fein.
Num ponto todos estão de acordo: custe o que custar terão que
lidar com os seus traumas. Como? Um exemplo recorrente é o da
África do Sul, onde foi criada a Comissão da Verdade e
Reconciliação para fazer luz sobre os crimes do apartheid.
"Nós sabemos que nunca obteremos justiça, mas temos o
direito à verdade", diz o padre católico Raymond Murray.
Daniel do Rosário