De Kamtchatka
a Kaliningrado


Dia 7 de Outubro. O sol ergueu-se lá no longínquo extremo-oriente russo e foi acordando, um após outro, os onze fusos horários da enorme Federação Russa. Partindo de Kamtchatka, Magadan, Sakalina, Vladivostoque, percorreu toda a imensa Sibéria, de Norte a Sul, atravessou os Urais e o Volga, foi ao Donbass e às repúblicas caucasianas, a Murmansk, passou em S. Petersburgo e Moscovo, chegou finalmente ao extremo ocidental, a Smolensk e Kaliningrado. Com o avanço do sol foi-se levantando uma vaga de protesto e reivindicação dos trabalhadores e dos povos por toda a Rússia. Ao apelo dos sindicatos, do Partido Comunista e outras forças de esquerda e patrióticas, muitos milhares de empresas, minas, escolas, mercados fizeram greve, com milhões de operários, professores, médicos, cientistas, camponeses. E povo, muito povo, com velhos pensionistas a par de muitos jovens e militares no meio dos civis, desceu à rua em comícios, cortejos, manifestações, vários cortes de auto-estradas, caminhos de ferro, pontes. O povo russo ergueu alto e uníssono a sua voz: "Eltsine, rua!"

Segundo o canal oficial da TV russa, seriam 10 milhões. Segundo Ziuganov, presidente do PCFR, em conferência de imprensa no dia seguinte, mais de 17 milhões. Outras fontes estimam 30 milhões, entre participantes directos e indirectos da Jornada Nacional de Protesto de toda a Rússia. Não é a exacta precisão dos números o que mais interessa, todavia. Mas sim o significado político inequívoco desta enorme acção de massas trabalhadoras e populares. Não que elas já não lutassem antes. Pelo contrário, o ascenso dos seus protestos desde a primavera, antes do colapso financeiro e do afastamento de Chernomirdine, foi mesmo um dos factores que levou Primakov à chefia do novo governo. Mas esta jornada, em que às anteriores reivindicações económicas e sociais parcelares se conjugou e avantajou uma comum reivindicação política, e da ordem dispersa se passou a um movimento articulado e convergente - marca um salto qualitativo cujo peso político ninguém pode ignorar. Que há que consolidar e reforçar, aprendendo com a experiência adquirida em tão vasta acção, para poder fazer sentir de novo e em permanência a sua vontade decisiva, a vontade popular, na cena política da Rússia, para que seja possível a saída da crise e a reconstrução económica, social e democrática desse imenso país.

No desfecho da crise política que levou em Setembro à nomeação de Primakov, como primeiro-ministro de um novo governo que, em alguns aspectos essenciais, parece querer romper com o curso desastroso que desde há sete anos levou o país à bancarrota e o povo à miséria - os comunistas, na Duma e em inúmeras regiões, demonstraram ser uma força incontornável para a saída da crise. Não que tenham o poder, nem que se tenha saído da crise. O governo Primakov ainda não passou pela prova das provas, a prática; e não é por acaso que os comunistas, que lhe deram luz verde sob condições, se mantêm no amarelo intermitente da vigilância crítica. Mas porque constituem o eixo forte de um amplo movimento unitário, popular e nacional, que traduz, como a jornada do dia 7 de Outubro demonstrou, a vontade de mudança dos trabalhadores e dos povos de toda a Rússia.

Primakov tarda em avançar com o programa do seu governo. A tarefa não é nada fácil, muito pelo contrário. Os oligarcas, em surdina, não estão parados. Nem as pressões externas, apesar da clamorosa falência dos seus diktats, deixaram de se exercer no Kremlin e arredores, jogando mais além com a ameaça de desintegração da Rússia, tal como levaram à desintegração da URSS. Mas a entrada em cena, de Kamtchatka a Kalininegrado, do movimento operário e das massas populares, é um novo dado político com que não se pode mais deixar de entrar em linha de conta. Reforçado, ainda mais ampliado, é ele em última instância que será decisivo para a saída da crise. Carlos Aboim Inglez


«Avante!» Nº 1298 - 15.Outubro.1998