TVisto
Um
Nobel
para a honradez
Por Correia da Fonseca
Há algumas semanas, não muitas, o canal brasileiro CNG transmitiu uma entrevista com José Saramago. A dada altura, já perto do final, a jovem entrevistadora perguntou, com a estranheza que sempre tem acompanhado a pergunta, por que é que um homem como José Saramago continuava a ser e a dizer-se comunista. O escritor respondeu, com a tranquilidade do costume: « Porque não há outra coisa.» Não sei se a jornalista entendeu a resposta que, contudo, tem para mim e para muitos milhares mais um significado transparente: é -se comunista porque essa é uma opção sem alternativa para quem, sendo lúcido e querendo assumir a sua quota de responsabilidade no mundo, se recusa à tentação de trair todos os outros em proveito de si próprio.
É sabido que nos últimos anos a mesma questão foi abundantemente posta a Saramago que sempre serenamente reafirmou a sua militância comunista. Sabe-se também, ou pelo menos adivinhar-se-á facilmente, que essa serenidade não foi tão fácil quanto pode parecer. Como alguns outros, mais talvez que todos os outros, Saramago foi pressionado para se «arrepender», assediado, alvo de tentativas várias de aliciamento. Mesmo a sua repetida preterição na atribuição do Nobel, sempre precedida de rumores segundo os quais «dessa vez» podia ser, acabou por ter o significado de uma tácita chantagem. Qualquer coisa como:« Renega o teu partido e poderás enfim receber o prémio!». Por isso a reiterada assumpção da sua condição de comunista e de militante do PCP teve o entendível sinal de uma honrada recusa, coerente com o percurso do honrado escritor, jornalista e homem que Saramago sempre foi.
Os dias seguintes
Atribuído,
finalmente, o Prémio Nobel da Literatura a José Saramago,
extingue-se a chantagem mas é improvável que cesse o assédio.
De qualquer modo, nas horas, nos dias que se seguiram à decisão
da Academia de Estocolmo, isto é, à vitória da teimosa
honestidade sobre as possíveis esperanças de se conseguir um
suborno, por entre o aparente júbilo unânime que inundou os media
nacionais e designadamente os quatro canais portugueses de
televisão, julguei entrever com nitidez bastante claros
vestígios de desconforto, de acidez provocada por dificuldades
de digestão. Já não falo nas declarações surgidas um pouco
por todo o lado em que uns democratíssimos sujeitos se diziam
radiantes pelo Nobel e felicitantes de Saramago apesar de
ele ser comunista. Nem na reincidência, vergonhosa mas na
verdade inevitável, de Sousa Lara no seu fundamentalismo
primário e analfabeto. Falo, por exemplo, da biografia de
Saramago transmitida pela SIC no próprio dia 8, injectada por
doses minúsculas mas virulentas de pejoração e calúnia. Falo
da ambiguidade que resulta de se pôr no ar um certo número de
opiniões «populares» que acusam de ser difícil e maçadora
uma obra literária que é «best-seller» não apenas em
Portugal, país que se sabe não ter tradições de leitura mas
sempre é terra do autor, mas também em Itália e em Espanha,
pelo menos. Falo até do escasso entusiasmo, de onde o aplauso
estava quase de todo ausente, contido nos excertos de
apreciações feitos por bonzos da nossa crítica literária e
que as TV's citaram.
Para explicar tais coisas há, é claro, além do sectarismo
anticomunista que se infiltra por tudo quanto é lado e que mete
a um canto o tão exaustivamente badalado sectarismo dos
comunistas, esse dado permanente da vida nacional que é a
inveja. Entre nós, a inveja domina tudo, revela-se por vezes
como a grande força capaz de mover montanhas ou quase, pelo que
bem se compreende que agora surja, embora sob formas (por
enquanto) cobardes contra o Nobel atribuído a Saramago. Contudo,
é claro que o facto de Saramago ser um homem que traz o
desassossego aos instalados, «a espada e não a paz», é um
dado a ter em conta.
Escrevo antes de Saramago chegar a Lisboa, onde provavelmente falará, e muito antes do dia 10 de Dezembro em que falará em Estocolmo. Mas lembro a entrevista que deu à Rádio espanhola no passado sábado e de que a RTP transmitiu um fragmento. Nele se viu José Saramago lembrar que no mundo actual há 225 pessoas que têm um rendimento superior ao rendimento total de 2500 milhões de outras pessoas. Isto é, que este mundo, tal como está, não presta. Ou, para usar as suas claras palavras, «es una mierda»; o que cruamente aponta para a necessidade imperativa e urgente de transformá-lo. Assim, como não compreender os que, amanhando-se muito bem no mundo que indigna Saramago, dificilmente dissimulam ou de todo não escondem o incómodo que este Nobel lhes provoca?