Relatório de Lino de Carvalho acusa
Governo agiu irresponsavelmente
no caso das «vacas loucas»



Ao fazer orelhas moucas às recomendações para erradicação da BSE que lhe foram dirigidas pela Assembleia da República e pela comunidade científica, o Governo agiu com uma "enorme irresponsabilidade". Tal atitude pode ter ajudado a que a chamada doença das "vacas loucas" continue a multiplicar-se nos próximos anos, tendo simultaneamente contribuído para o "alarme da opinião pública e dos consumidores" e dado azo à União Europeia para o embargo a Portugal. Estas conclusões constam do relatório elaborado pelo deputado comunista Lino de Carvalho no âmbito das audições conduzidas pela comissão parlamentar de Agricultura para esclarecimento da situação da BSE no nosso país.

No texto, cuja discussão em Comissão estava prevista para ontem, Lino de Carvalho acusa directamente o anterior titular da pasta da Agricultura, Gomes da Silva, de ter travado a adopção de medidas essenciais para o controlo e erradicação da doença - a proibição total da utilização da farinha de carne e osso de mamíferos na cadeia alimentar animal -, invocando razões de natureza economicista, ou seja, os custos que elas acarretariam.
Tal medida proibitiva, segundo foi apurado no decorrer da audição, chegou a estar prevista no diploma emanado do Ministério da Saúde que, em Janeiro de 1997, interditou "a entrada, por qualquer forma, na cadeia alimentar humana, bem como a detenção e comercialização para esse efeito, de encéfalo, medula espinal, olhos, amígdalas, baço, timo e intestinos de bovinos, qualquer que seja a sua proveniência".

Insólito comportamento

No texto inicial deste diploma, salienta Lino de Carvalho, "esteve previsto que tal proibição abrangesse igualmente a cadeia alimentar animal". Tal intenção, porém, acaba por esbarrar no Ministério da Agricultura, de quem parte um pedido no sentido de o articulado do decreto-lei ser amputado da expressão "cadeia alimentar animal", ainda que ao arrepio das opiniões do próprio Grupo de Trabalho Interministerial para a BSE então existente.
Embora não tenha sido possível determinar com rigor no quadro da audição as razões de tão "insólito comportamento" do Ministério da Agricultura, tudo leva a crer que na sua origem tenham estado os custos de aplicação do diploma. "Elementos obtidos permitem indiciar - salienta o relator - que os custos da aplicação do diploma - ,estimados pelo Director-Geral da Veterinária em novecentos e vinte mil contos ou um milhão trezentos e quarenta e quatro mil contos por ano, consoante se tratasse somente da destruição dos materiais de risco especificados ou também dos órgãos e tecidos previstos no D.L. n.º 32-A/97 -, e a necessidade de cinco nspectores sanitários para garantirem o cumprimento eficaz do diploma terão estado na origem dests medida não ter sido aprovada".
Não menos grave foi ainda a atitude assumida pelo ministro da Agricultura, em Dezembro de 1996, na reunião do Conselho Agrícola, quando resolve "juntar o seu voto ao dos países que se opuseram à proposta de Comissão Europeia de interditar a incorporação de todos os tecidos de risco específicos nas cadeias alimentar humana e animal".

Recomendações esquecidas

Uma posição tanto mais criticável quanto é certo que, na sequência do Plano de Erradicação da BSE aprovado pela Comissão Europeia, foram propostas ao Governo várias medidas de controlo da doença por iniciativa quer do Grupo Nacional da BSE quer do Grupo Interministerial para a BSE, medidas essas entre as quais se incluía "a interdição da incorporação da farinha de carne e de ossos e gorduras de origem animal em alimentos para animais".
Esta mesma recomendação, lembra o texto do relatório, foi reiterada pelo segundo Grupo de trabalho Interministerial da BSE, que, em Agosto de 1997, depois de recordar as recomendações anteriores referentes à proibição da incorporação de farinhas de carne e osso nos alimentos para animais, sublinha ser "preocupante e passível de penalização por parte da Comissão Europeia o facto da totalidade das nossas fábricas de subprodutos não haverem ainda instalado os equipamentos definidos na decisão da Comissão n.º 96/449/CE e continuarem a colocar no mercado produtos não conformes à legislação o que não permite descartar a eventualidade e possibilidade de reciclagem da doença".
Também a missão veterinária da Comissão Europeia que esteve no nosso país em Maio passado concluiu, como refere o relatório, que, pese embora nas unidades de transformação de subprodutos estejam a ser cumpridos os respectivos requesitos e seja adequado o sistema nacional em vigor para controlar a origem das matérias-primas e a produção, a verdade é que a "frequência dos controlos oficiais, designadamente nas unidades de produção de alimentos para animais, não é suficiente".

Resposta tardia

Entre as medidas por si preconizadas, o relatório da missão veterinária da Comissão Europeia recomendava também que "se aplique legislação relativa à proibição total de utilização de farinha de carne e osso de mamíferos na alimentação de todas as espécies de gado".
Contrariamente ao que seria de esperar, porém, o Governo tardou em reagir, só respondendo ao relatório da missão veterinária quatro meses depois, o que no entender de Lino de Carvalho terá permitido "durante esse lapso de tempo que se consolidassem no plano internacional as críticas constantes do texto".
E se a resposta da Autoridade Veterinária Nacional vem reconhecer a "necessidade de ir mais além, nomeadamente no que se refere aos controlos", a mesma não deixa de revelar uma "óbvia desorientação ou, no mínimo, desacertos, ao nível da administração pública portuguesa e do Governo".
É que, observa o deputado comunista, "enquanto a Autoridade Veterinária afirma na resposta à Comissão Europeia «que não pode concordar"» com a «proibição total da utilização da farinha de carne e osso de mamíferos na alimentação de todas as espécies», o Conselho de Ministros do dia anterior à resposta e, posteriormente, o de 22 de Outubro de 1998, aprovaram exactamente essas medidas, que, aliás, deveriam ser alargadas a todo o espaço da União Europeia".
Lino de Carvalho não tem dúvidas, pois, que do conjunto de medidas propostas no Plano de Vigilância e Erradicação da BSE - designadamente a vigilância sanitária das explorações e o esclarecimento da opinião pública e, sobretudo, a proibição da entrada na cadeia alimentar animal de materiais, de risco e sua destruição - , "ou não foi, de todo, realizado ou só o foi de forma muito parcial ou tardia".
Motivos de sobra, por conseguinte, para que o deputado do PCP, não obstante a avaliação positiva por si feita do abate compulsivo de todos os bovinos com BSE, seja severo na condenação ao Governo pelo facto de, especifica, "durante cerca de dois anos e meio" este "ter assumido uma atitude de enorme irresponsabilidade ao não dar seguimento às medidas preconizadas tanto pela Assembleia da República, como pela comunidade científica, pelos grupos de trabalho e comissões criadas para acompanhar a BSE e pelos próprios serviços do Ministério".
Neste domínio, destacado é sobretudo o "adiamento, desde pelos menos Abril de 1996, de estender à cadeia alimentar animal a proibição de utilização de produtos de origem bovina, ovina e caprina e dos correspondentes materiais de risco com a sua componente destruição", bem como, noutro plano, a ausência de uma "campanha sistemática, serena e não alarmista, de informação aos consumidores e de promoção da produção de carne bovina nacional".
Face à dimensão da BSE em Portugal, Lino de Carvalho não deixa entretanto de manifestar a opinião de que lhe parecem "injustificadas e desproporcionadas" tanto a proibição decretada pela Espanha como o embargo decidido pela União Europeia", fazendo notar, a propósito, que "Portugal é um dos países de mais baixa taxa de incidência da BSE" no quadro da União Europeia.

Medidas necessárias

Par além de proceder a um esclarecimento sobre a evolução da situação da BSE no nosso país e de apurar responsabilidades, o relatório parlamentar de Lino de Carvalho aponta um conjunto de medidas que, no seu entender, são essenciais para garantir a defesa da produção nacional e dos consumidores.
Destaque merecem, por exemplo:
- as iniciativas diplomáticas e judiciais a desencadear pelo Governo com vista a terminar com o embargo;
- a previsão no plano orçamental de medidas financeiras de apoio aos produtores e a toda a fileira pecuária pela quebra de rendimento, aumento de custos e perda de competitividade em resultado das medidas decretadas pela Espanha e do embargo da Comissão Europeia;
- alterações nos sistemas de alimentação com a incorporação de matérias-primas alternativas à alimentação animal, como é caso dos produtos do complexo de soja;
- adopção de medidas de rigoroso controlo sanitário e fiscalização na importação de gado, carne e alimentos compostos. Afirmada por Lino de Carvalho é ainda a sua convicção de que, face aos dados estatísticos e científicos disponíveis, "não constitui perigo para a saúde pública o consumo de carne bovina de origem nacional com sistemas naturais de alimentação à base de pastagens e prados e com controlo de qualidade assegurado".
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998