Cinco estocadas
em cinco mentiras


1.
As imaginárias fronteiras das regiões no acesso aos serviços públicos
Na argumentação mais rasteira e anónima de alguns adeptos do Não às regiões, nunca assumida de forma explícita e pública, surgiram nos últimos dias as seguintes «pérolas»:
- Um residente na região A deixaria de poder utilizar o hospital central localizado na região B...
- Um estudante com residência na região C não poderá frequentar a universidade que existe na região D...
Isto para lá da campanha mentirosa de maior burocracia, de mais um patamar de decisão e mais custos que as regiões, supostamente, trariam.

É necessário reafirmar: um objectivo central da regionalização é aproximar um vasto conjunto de serviços públicos dos cidadãos. A descentralização e a desconcentração de serviços da Administração Central para as regiões, com o apoio de um adequado sistema de finanças regionais, devem permitir melhorar o acesso dos cidadãos que hoje gastam mais tempo e mais dinheiro para aceder a muitos bens e serviços públicos essenciais. Ou seja, a criação das regiões pode tornar mais fácil o acesso à repartição pública, à delegação de um serviço da Administração Central para tratar, requerer, reclamar ou contestar, a obtenção de um qualquer documento ou outro serviço público.

A regionalização vai sobretudo aproximar do cidadão o poder de decisão de um elevado conjunto de processos administrativos, que deve ser transferido para as regiões. É mentira que a criação das regiões vá duplicar os patamares de decisão, a burocracia e os custos. Pelo contrário, a eliminação do patamar da Administração Central substituída pela Administração Regional, através da descentralização, pode significar uma evidente simplificação e rapidez na resolução de processos administrativos e a redução do número de repartições e funcionários a pronunciarem-se sobre o mesmo papel.

Contrariamente ao que a propaganda terrorista do «Não» refere, a regionalização não vai impedir os habitantes de Trás-os-Montes de frequentarem os hospitais centrais do Porto, ou os residentes no distrito da Guarda de utilizarem os hospitais de Coimbra ou os habitantes do Alentejo utilizarem um hospital central de Lisboa, sempre que tal for necessário e decidido pelos médicos e unidades locais do Serviço Nacional de Saúde. E o facto de alguém residir no Alentejo não o vai impedir de aceder à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto ou de frequentar um curso de Direito na Universidade de Coimbra porque o concurso de acesso ao ensino superior é nacional (e tudo recomenda que assim continue a ser). A regionalização, pela criação de poderes administrativos regionais, responsabilizados perante as populações através de eleições, pela definição clara e racional das áreas e responsabilidades dos diversos serviços públicos, ao nível municipal, regional ou central, pode é permitir uma articulação e uma coordenação mais eficazes e mais rápidas de todos os serviços públicos, facilitando e melhorando o acesso dos cidadãos.

A criação das regiões administrativas vai ser a possibilidade de muitos cidadãos portugueses acederem a serviços públicos de qualidade e em melhores condições do que actualmente.. Quer pela localização na sua região de departamentos ou repartições de serviços públicos que serão descentralizados e desconcentrados, quer pela possibilidade de uma mais eficiente utilização dos serviços, cujo funcionamento e resposta podem ser melhor ajustados às necessidades das populações e actuarem de forma mais eficiente e coordenada, se foram dirigidos a nível regional.

Votar não às regiões é escolher a continuação do caos, da burocracia, dos elevados custos da administração pública portuguesa hoje. Votar sim à regionalização é começar a dizer não à continuação desse estado de coisas na administração pública.

2.
As supostas «guerras» de cada região em torno do Orçamento
José Alberto de Carvalho:
«Mas as regiões não vão ter poder legislativo. Está a colocar a questão da ingovernabilidade do país porquê?»

Cavaco Silva:
«Porque quando se discutir um Orçamento de Estado cada região vai fazer toda a sua chantagem política para apanhar o mais possível de recursos e será muito difícil ao Governo da República governar segundo um rumo de interesse nacional.»
Estas afirmações de Cavaco Silva, na entrevista à SIC em 15.10.98, constituem o exemplo mais acabado e mais descarado de toda uma insistente linha de mistificação em torno da questão do financiamento das regiões e das alegadas «guerras» que suscitaria. Mas constitui também uma daquelas oportunidades que nenhum cidadão devia perder para perceber que, em muitos pontos deste debate, não se trata simplesmente de haver diferentes opiniões mas sim de haver quem fale verdade e quem minta deliberadamente.

Com efeito, Cavaco Silva não pode deixar de saber tão bem como o PCP várias coisas fundamentais: a primeira é que haverá uma Lei de Finanças Regionais (o PCP até tem um projecto já entregue há muito tempo) que a AR terá de discutir e aprovar, num acto de exercício de soberania legislativa e de responsabilidade nacional ; a segunda é que será essa lei que fixará o valor da participação do conjunto das regiões administrativas nas receitas gerais do Estado (designadamente através da fixação de um percentagem do total da previsão do IRS e IRC a cobrar no país); a terceira é que será essa lei que fixará os critérios gerais de distribuição dessas verbas pelas regiões (em função da área, número de habitantes, taxa de mortalidade infantil, população jovem e idosa, ou outros). E é fundamentalmente através destes critérios fixados na lei que se terá de assegurar a solidariedade entre as regiões e o favorecimento relativo das menos desenvolvidas.

Destas três verdades incontornáveis (que podem ser resumidas na ideia de que se fará para as regiões o que há muito se faz para as autarquias locais) resulta a evidência de que, contrariamente ao que afirma Cavaco Silva, em torno de cada Orçamento não haverá nenhum negociação directa ou indirecta do Governo ou da AR com cada região sobre as verbas que lhe cabem, o que acontecerá sim é que o Orçamento terá de respeitar os valores e os critérios consagrados na Lei de Finanças Regionais. Também aqui o exemplo das actuais autarquias locais volta a ser relevante. De facto, em torno de cada Orçamento, ninguém vê o Governo ou a AR a discutir com cada município as verbas a que cada um tem direito.

Como é evidente, face à experiência, é natural que cada região ou as regiões no seu conjunto, venham depois defender revisões ou alterações da Lei de Finanças Regionais, mas isso sendo aliás inteiramente normal (também acontece hoje com as autarquias locais) é completamente diferente da situação de «guerras» e «chantagens» em torno do Orçamento de cada ano que Cavaco Silva veio agitar. Finalmente, é justo observar que as declarações de Cavaco Silva, sendo uma mentira completa sobre a regionalização, acabam por ser um retrato aproximado do que, de facto, aconteceu ao longo dos 10 anos dos seus Governos em relação às Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, às quais, por serem governadas pelo PSD, o PSD nunca impôs uma Lei de Finanças como a que os municípios têm e as regiões administrativas do Continente também vão ter.

3.
O falso «cheque em branco» De Dias Loureiro a Paulo Portas, de Francisco Louçã a Miguel Sousa Tavares, são às carradas os defensores do «não» que todos os dias agitam o espantalho do «cheque em branco» que, segundo eles, resultaria de as atribuições das regiões supostamente ou não estarem definidas ou o estarem em termos muito gerais, de não estar ainda aprovada uma Lei de Finanças Regionais, de não saberem quais são as capitais, etc.

A verdade porém é que quer a Constituição quer a Lei-Quadro das regiões administrativas (repita-se mil vezes: aprovada por unanimidade em 91) já fornecem uma muito razoável fixação de elementos de identificação e caracterização desta reforma e da sua natureza, o que, só por si, contraria a tese do «cheque em branco». Basta referir aliás que as eleições para o poder local democrático em 1976 se realizaram sem que existisse previamente um quadro legislativo semelhante ao que já hoje existe para a regionalização. É bom lembrar que a Lei das Competências das autarquias só foi aprovada em 1977 e que a Lei das Finanças Locais só foi aprovada em 1979. E quanto às capitais (que aliás não têm de existir), só dá vontade perguntar aos senhores do «não»: então V.Exas. queriam que as supostas capitais estivessem definidas antes do referendo e antes de estarem eleitos os órgãos regionais a quem têm de caber essas e outras decisões? Que grandes democratas! Mais: estes senhores agora querem saber tudo ao pormenor e antecipadamente. Mas, quando consultadas pela AR, muitas Assembleias Municipais influenciadas pelo PSD, o que responderam (prejudicando as populações) foi que, antes de haver referendo, não se pronunciavam sobre o mapa nem sobre coisa nenhuma.

Mas o que é fundamental perceber é que, se já estivesse aprovada legislação mais detalhada sobre as competências das regiões e se já estivesse aprovada uma Lei de Finanças Regionais, aqueles mesmos que hoje gritam contra o alegado «cheque em branco» estariam agora envolvidos na maior gritaria contra a «política de factos consumados», pois - diriam eles - era um escândalo que ainda o povo não tivesse dito em referendo se a regionalização devia avançar e já o PCP e o PS tivessem aprovado leis como se o «sim» já tivesse ganho.

4.
A pretensa contradição do Mapa das 8 regiões com a redução das assimetrias regionais
«As regiões pobres não terão peso para atraírem empresários nem técnicos. Obterão uma porção menor dos impostos pagos pelas ricas. Empobrecerão. Receberão menos.
O que receberem, virá das mãos dos influentes regionais.»

Luís Salgado Matos
Público, 2.11.98


«... o mapa regional sofre do pecado original de assentar na agregação de distritos, sem a mínima racionalidade territorial, e ter enjeitado as áreas das comissões de coordenação regional, que deram tão boas provas como quadro operacional de políticas de desenvolvimento regional, que hão-de justamente constituir a esfera privilegiada das futuras funções regionais.»
Vital Moreira
Público, 21.4.98
Como se vê, os adeptos do Não têm propagandeado a incompatibilidade do Mapa das 8 regiões com a redução das assimetrias regionais.

A demonstração é feita através de um raciocínio tão simplista quanto falso: separando as regiões «ricas» (as do litoral) das regiões «pobres» (as do interior), aquelas deixam de poder ajudar estas, e o fosso entre elas alargar-se-á. Ou então, as regiões do interior não têm «massa crítica», isto é, não possuem recursos e meios humanos e financeiros para se desenvolverem! Ou ainda, as regiões «ricas», concentrando os recursos e a produção de riqueza nacional, não permitirão o reequilíbrio regional com a redistribuição dessa riqueza! Ou ainda, a ideia que as regiões «ricas», pelo peso populacional, político e económico, continuarão a concentrar e a localizar nelas os investimentos públicos e privados do País.

Ora, tudo isto seria verdade se se estivesse a propor regiões de carácter vincadamente autonómico e político, com direito a fazer leis, lançar impostos e autogerir os seus recursos! Mas não! O que se propõe com a regionalização são regiões administrativas.

Os adeptos do Não sabem que é assim mas, falsificando o ponto de partida, levam a água ao seu moinho: a conclusão é falsa, mas demonstram o que querem demonstrar!

O que está em causa com a regionalização é a criação de uma autarquia local - a Região Administrativa - em que o grosso dos recursos financeiros, tal como para as municípios e as freguesias, virá do Orçamento do Estado, através de uma adequada Lei de Finanças Regionais, a aprovar na Assembleia da República.

Com a regionalização administrativa (como, aliás, com a anterior criação das Regiões Autónomas dos Açores e Madeira), não vai alterar-se o papel central do Estado como principal redistribuidor (regional e social) da parte de riqueza produzida no País, e recolhida através do aparelho fiscal. Distribuição feita através das decisões do Orçamento do Estado e de muitas das normas legislativas do Governo e da Assembleia da República.

Através dessa função redistributiva, pode o Estado reequilibrar a desigualdade de recursos e meios entre as regiões do País (como, aliás, acontece, embora de forma insuficiente, com a Lei de Finanças Locais). Assim o queiram os partidos, o do Governo e os da oposição!

Por outro lado, a criação de regiões, relativamente homogéneas do ponto de vista do desenvolvimento e características socioeconómicas, pode permitir dos órgãos regionais respostas específicas e adequadas aos problemas particulares de subdesenvolvimento dessas regiões. Em hipotéticas regiões que juntassem litoral/interior, haveria sempre a tentação de concentrar a aplicação de recursos e até a representação política, nas áreas mais populosas e eleitoralmente mais influentes.

É ver o que aconteceu com a «representação» das regiões portuguesas no Comité das Regiões da União Europeia: a «Região Norte» está representada por autarcas do Porto, Braga e Maia, a Região Centro por autarcas de Coimbra e Viseu e a Região Lisboa e Vale do Tejo por autarcas de Oeiras e Lisboa! Onde os representantes de Trás-os-Montes, Beira Interior, Ribatejo?

Deve acrescentar-se que a regionalização, permitirá um reequilíbrio de forças e visibilidade entre e das regiões, corporizadas nos órgãos regionais eleitos, e tornará transparente e objectiva a participação de cada uma nos recursos do País, através da lei de Finanças Locais. Assim se evitará a continuação da opacidade e manobras de corredor com que «as mãos dos influentes regionais» intervêm no Orçamento do Estado e nas repartições do Terreiro do Paço para «cacicarem» as populações.

Além do mais há uma experiência de vinte anos com o funcionamento de regiões que juntam litoral/interior e dirigidas pelas Comissões de Coordenação Regional (CCR). As «boas provas» são as que se sabem: as assimetrias não diminuíram, aumentaram!

Talvez porque a estratégia em geral delineada, fosse a que o Dr. Valente de Oliveira, então Presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte, definiu em 1982, nas suas «Linhas de Estratégia de Desenvolvimento da Região Norte». Nesse texto, além de se projectar a liquidação (o que veio, como se sabe, a acontecer) das vias férreas do Tâmega, Corgo, Tua e Sabor, estabelecia-se a seguinte e lapidar tese: «Os esforços de desenvolvimento regional devem concentrar-se nas zonas já desenvolvidas (Porto e Braga) e esperar que os efeitos de difusão benéfica alastrem daí para o resto da Região.» (sic) (II Volume, CCRN, 1982).

É evidente que ainda hoje os transmontanos e durienses esperam pela difusão desses «efeitos benéficos»!

5.
Até ao último minuto a grande mentira sobre os impostos

A respeito de «impostos» e regiões, é absolutamente certo que os defensores do «não» (com especial destaque para Paulo Portas) vão acabar como começaram: mentindo e mentindo fria e deliberadamente. Vale tudo! Metem «taxas» e «tarifas» ao barulho, mas esquecem-se de dizer que a Lei-Quadro fala nessa possibilidade mas em ligação com a «prestação de serviços pela região», ou seja escondem que, se não houver serviços prestados, também não há taxas nem tarifas. Invocam as «derramas regionais» (adicionais sobre impostos, que aliás têm de ser regulados por lei a aprovar pela AR) mas esquecem-se de dizer que, se essa possibilidade está na Lei-Quadro, a responsabilidade também é do CDS-PP e do PSD que a votaram e que, ponto essencial, as «derramas» não constam do projecto de Lei de Finanças Regionais já apresentado pelo PCP.

Agora, para refrescar as suas mentiras sobre «impostos», os partidários do «não» andam a argumentar que, na última revisão constitucional, foi introduzido o principio de que as autarquias locais (logo, também as regiões administrativas) passam a dispor de poderes tributários, identificando isso desonestamente com o direito de lançar impostos.

A este respeito importa esclarecer:
- O art.º 238º da Constituição passou de facto a incluir um n.º 4, aprovado por unanimidade, que dispõe que «as autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei»;
- Este acrescento «resulta do projecto de revisão constitucional do PSD» como é afirmado na edição «Uma Constituição moderna Para Portugal» («A Constituição revista em 1997, anotada por Luís Marques Guedes») com «Prefácio do Presidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa».
- Estes «poderes tributários» respeitam às tais «derramas» e não tem nada que ver com a criação de impostos. E a melhor resposta à desonesta utilização deste artigo da Constituição pela campanha do «não» não precisa de vir da nossa boca. Está, clarinha como água, na anotação que, na citada edição do PSD da Constituição, os responsáveis do PSD escreveram, neste caso com verdade.

Dizem eles: «Fora de causa, de todo modo, fica a criação de impostos, matéria que continua a constituir reserva legislativa da Assembleia da República». Ou seja, o que sempre temos afirmado!
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998