Coisas da vida
por Anabela Fino



A morte anunciada de José Cardoso Pires não tornou menos sentida a perda de um homem que pela sua obra se tornou uma referência para muitos de nós. A notícia, que a prolongada doença tornou iminente, apanha-nos no entanto desprevenidos, como se, no fundo, a ideia da morte nos fosse estranha. Paradoxo absurdo, como tão bem sabemos. Resta-nos a vida, que a morte está certa, diz-se, sem contudo se acreditar.
E, no entanto, é sobretudo na morte dos outros que nos lembramos da importância que tiveram na vida. Na deles, e na nossa. Como se uma espécie de pudor nos tolhesse, em vida, de exprimir os sentimentos que outras vidas tiveram o condão de acender em nós. Quando nos apercebemos disso, é quase sempre demasiado tarde, porventura inútil. Por isso choramos nos mortos, mais do que a ausência, a injustiça de nos deixarem a braços com a vida amputada de presenças e cada vez mais cheia de vazios, repleta de palavras por dizer e de gestos por cumprir, somando o que diminui, sozinhos com memórias nunca partilhadas.
Chora-se nos mortos a dor dos vivos. E o que dói é que a morte - a vida? - roube os momentos de prazer, as alegrias, as dúvidas, a raiva, os gostos e desgostos, os entendimentos e os desencontros, que se acreditava poder continuar a usufruir através de todas essas vidas que mesmo sem o saberem fizeram parte das vidas de tantos outros. Sejam eles familiares, amigos, simples conhecidos, gente anónima ou figuras públicas, cineastas, pintores, artistas, escritores, compositores, filósofos, poetas, ao morrerem deixam mais pobres os vivos. E isso é doloroso. Não haverá mais nenhum «Dinossauro Excelentíssimo» nem outra «Balada da Praia dos Cães», como não haverá mais «Senhores da Guerra» ou «7 Samurais», nem «Kilas, o Mau da Fita», ou «Manifesto anti-Dantas» declamado numa qualquer sala de teatro, nem «Heróicas» dirigidas em concerto, nem…
Revisitam-se as obras, é certo. Até há quem se aproprie delas, as tome como exemplo, e isso - diz-se - é uma forma de continuar vivo.
Certamente outros nomes, outras vozes, outros estilos, outras músicas, outros filmes, outras obras, enfim, virão ajudar a pensar o mundo e a fornecer apetrechos para o transformar, num ciclo que cremos ininterrupto neste ponto ínfimo do universo em que existimos. Mas esta inevitabilidade da vida feita de mortes não diminui a dor da perda. E, no entanto, como dizia Zé Gomes Ferreira, é bem verdade que «viver sempre também cansa», e que melhor seria poder-se «morrer de vez em quando», deixando alguém a velar um merecido descanso, alguém que informasse as visitas, em voz baixa: «Suicidou-se esta manhã, agora não o vou acordar por uma bagatela.» Liberdades poéticas, dirão os cépticos, mas quem pode negar que, a ser assim, depois seria mais fácil recomeçar?
O que dói na morte é tudo o que fica por viver.
O que às vezes cansa é este eterno trabalho de semeadores de tão problemática sementeira.
O que consola na morte é sabê-la húmus da vida. Saibamos nós honrar os que partem tornando-a melhor.
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998