À moda do Palácio da Ajuda
por Manuel de Melo



O Ministério da Cultura, sabe-se, parece ter tomado o gosto a um certo pendor para o conflito, a inépcia e o erro. Ao cabo de três anos, já não têm conta os episódios em que, isolados ou por grosso, estes elementos avultam. Demissões tempestuosas, com a marca da arrogância do titular da pasta? Aí lembramos, entre várias, Rui Vieira Nery e Vítor Oliveira Jorge, José Afonso Furtado e Francisco Bettencourt, personalidades que, de uma ou outra forma, merecendo ou não o nosso acordo, possuíam ideias, agiam segundo projectos debatidos, estimulavam o trabalho crítico no interior das lógicas de democracidade e eficácia. Nomeações tresandando a compadrio, a remuneração do fideísmo e ausência de espessura, nos planos do perfil e da competência? Basta passar em revista a turbulência que conduziu à indigitação, salvo excepções, dos ocupantes de altos cargos no interior do aparelho que Manuel Maria Carrilho dirige. A secretária de Estado, Catarina Vaz Pinto, desde logo, pessoa cujos méritos se acham rebatidos a funções de quase intendência. Convulsões, atritos, quezílias de muita bílis e não menos enredos? Poucos serão os agentes culturais à margem do inner circle do ministro que, em diferentes situações, não tenham experimentado já efeitos de uma singularíssima maneira de governar... Que o digam arqueólogos e cineastas, músicos, companhias de teatro, escritores, técnicos de conservação e restauro, os artistas em geral, as associações em particular. O empertigamento neopragmático vem conduzindo, valha-nos isso, a uma cena animada, no lado oposto à monotonia da normalidade institucional.
E, no entanto, os inícios do mandato de Carrilho foram assinalados por um conjunto de intervenções que suscitavam aplauso e expectativa. Decisões como as relativas ao Parque Natural de Foz Côa ou ao Preço Fixo do Livro, a autonomização do IPLB ou a criação de alguns institutos públicos (aos quais, em breve, se seguiriam outros a todas as luzes discutíveis), certas medidas de racionalização e transparência, faziam admitir a possibilidade de um corte com o santanismo, uma prática atenta à vitalidade e às necessidades do sector. Tanto havia a realizar, havia e há, que desde a primeira hora se pediu clarividência, justeza e rasgo em vez da rotina, do casuísmo, do apoio sistemático às clientelas de sempre. A curto prazo se percebeu, contudo, que o Ministério, refém de poderes contraditórios e uma casta de equívocos, se quedava aquém do esperado e do exigível. Pior - quanto mais se quedava aquém do esperado e do exigível, mais a postura oficial surgia à mercê da empáfia e do frenesi, substituindo a acção pelo marketing, o equilíbrio e a responsabilidade de Estado pela ligeireza à medida dos media, em especial a alcova da televisão.
Enquanto isto, o Conselho da Europa aprovou um relatório implacável sobre a política cultural portuguesa, identificando insuficiências, debilidades e orientações à revelia de qualquer pensamento descentralizador. Enquanto isto, o IPLB permanece relegado a uma invisibilidade entre a depreciação e o constrangimento (onde esteve, por exemplo, nas homenagens nacionais a José Saramago?), prosseguindo um esforço de renovo que pode ser comprometido por carência de meios. Enquanto isto, a Lei de Bases do Património jaz no torpor da inércia, adiada a audição de especialistas e entidades diversas, inexplicavelmente suspenso o diálogo com os dignitários da Igreja Católica, detentora de pelo menos 2/3 do acervo em consideração. Continua, entretanto, por assinar o pacto patrimonial. Continua por efectivar o inventário de bens móveis e imóveis. Continua por regular a actividade antiquária. Ou seja - a paralisia e a indefinição transformam-se em instrumento performativo do iluminismo à moda do Palácio da Ajuda.
Conhecem-se os números do Orçamento de Estado para 1999. Ao invés da propaganda do PS, a Cultura segue uma linha declinante - tanto no que se refere às verbas para investimentos como em domínios vitais na gestão do quotidiano. A opção do Executivo exprime, é bem de ver, uma previsão de crise. Mas exprime também, num tal contexto, o quanto nem hesita em diminuir - de facto e simbolicamente - o peso relativo de um Ministério que chegou a ter como paradigma de uma mundividência não conservadora. Em face disto, o Professor Manuel Carrilho irá decerto, nos tempos que se aproximam, recorrer à teoria da argumentação, citando talvez Rorty ou António Guterres, para explicar as vantagens da pós-modernidade nos enquadramentos de penúria e mistificação...
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998