PS 98 versus PS 95
A privatização do notariado
por Odete Santos



O Ministério da Justiça prepara-se para apresentar à Assembleia da República um conjunto de propostas visando a privatização dos cartórios notariais. No último mandato do Governo do PSD, a privatização proposta pelo então ministro da Justiça, Dr. Laborinho Lúcio, teve a oposição firme dos grupos parlamentares do Partido Comunista e do Partido Socialista. Com bons e válidos argumentos. Lamentável é que, como acontece noutros domínios, o Partido Socialista venha brandir os mesmos argumentos utilizados pelo PSD para privatizar os cartórios notariais. Mas não admira. A fúria privatizadora do PS em nada desmerece do denodo do PSD contra as privatizações.

Relativamente ao notariado português nem pode utilizar-se o velho e estafado (e falso) argumento com que tantas vezes se justificaram privatizações. De facto, o notariado português é uma fonte de receitas inesgotável para o erário público. O Senhor Ministro da Justiça confirmou na Comissão de Assuntos Constitucionais Direitos, Liberdades e Garantias, a instâncias do PCP, que, com a privatização, o Estado ia perder receitas que têm servido ao Ministério da Justiça para remodelação do Parque Judiciário (por exemplo).
De facto, segundo reza um documento do Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, relativo a 1996, a receita líquida entregue pelos cartórios notariais foi nesse ano de quase 14 milhões de contos. E o senhor Ministro da Justiça confirmou que tal receita tem estado sempre em progressão.
Isto é: As receitas dos cartórios notariais pagam os vencimentos dos notários, dos funcionários, todas as despesas de funcionamento, sobrando ainda, neste momento, mais de 14 milhões de contos/ano, para os cofres do Ministério da Justiça!
Então, por quê privatizar?
Argumentou o PS/98, em debate recente sobre a privatização do notariado, suscitado pela apresentação de um projecto de lei do PSD, que da concorrência nascida da privatização decorreria um melhor atendimento do público. Mas a concorrência (que aliás não será a mãe de todas as virtudes) já existe de facto no actual modelo de notariado. Os notários que quiserem ganhar mais nos emolumentos, trabalharão (e trabalham) mais. Acresce que o modelo concorrencial que temos (porque muito poucos actos são reservados aos notários da área da residência) é um modelo a que o Estado impõe a solidariedade. Das verbas dos cartórios de maior rentabilidade pagam-se os cartórios deficitários; aqueles que têm de estar instalados em locais de menor atendimento do público porque o Estado tem de garantir aos cidadãos o acesso ao cartório notarial próximo da sua residência.
Este modelo de concorrência solidária só é possível porque o notário de hoje não está dependente dos interesses privados de ninguém para auferir os seus vencimentos. O que não sucederá com os notários privados.
Diz-se também que as receitas vultuosas arrecadadas pelo Estado com a actividade notarial devem ser sacrificadas porque daí resultará um melhor atendimento dos cidadãos. Cabe então perguntar: por que é que os sucessivos ministérios da Justiça nada fizeram para melhorar esse atendimento utilizando as receitas dos cartórios notariais? Por que é que nada se fez no sentido de uma informatização dos cartórios que aliviasse notários e funcionários de pesadas tarefas burocráticas? Por que motivo não se formaram funcionários nas técnicas de informática? Por que é que funcionam ainda tantos cartórios em instalações sem dignidade, sem o mínimo de condições de trabalho? Por que é que, se faltam muitos cartórios, como o referiu o Senhor Ministro da Justiça, não se instalaram mais? Por que é que não se preencheram os actuais quadros? Ou será que o objectivo de privatizar já vem de há muito, e era necessário que a situação se degradasse para justificar a privatização?
Diz-se que a privatização produzirá a desburocratização. Mas se é o Estado quem cria as regras a que se submete a actividade notarial, então por que é que os sucessivos ministérios da Justiça não desburocratizaram a actividade notarial?
O notário fiscaliza hoje a conformidade com a lei dos actos que lhe são submetidos. Fiscaliza o cumprimento da legislação relativa ao urbanismo, fiscaliza o cumprimento do imposto do selo, das normas sociais da legislação sobre arrendamento urbano. Quer o Ministério da Justiça desburocratizar aligeirando os notários privados destas funções? Mas então por que não o quer fazer relativamente aos notários públicos?
E se o vai fazer relativamente aos notários privados, vai ter de criar mecanismos, quiçá recaindo nas já sobrecarregadas conservatórias dos registos prediais, para que se faça a fiscalização. As filas dos cartórios notariais vão transferir-se para outra repartição do Estado.
A privatização visará mesmo garantir ao vulgar cidadão um melhor atendimento no cartório notarial?
De facto, a privatização é feita não em nome do cidadão comum, daquele que reclama porque a escritura demora muito, mas em nome daqueles que a grandes e transnacionais negócios se dedicam, e que querem ter um notário às suas ordens, um notário privado que responda celeremente aos seus interesses.
O modelo do notário privado é um modelo dependente da tirania do público, dos grandes interesses. O vulgar cidadão é, nesse modelo, relegado para último lugar porque não tem poder económico. Como é que pode este modelo garantir a existência dos cartórios deficitários, daqueles cartórios de província com pouco trabalho, que é necessário manter para que os cidadãos não sejam obrigados a grandes deslocações aos grandes centros?
Dizem-nos também que na Europa o modelo de notariado é o do notariado privado. E que, por isso, é necessário mudar. Mas por quê mudar quando outros invejam o notariado português, e se deslocam mesmo a Portugal (como aconteceu com notários da Galiza) para estudarem as formas de organização dos notários públicos? Quando, por exemplo, num país como a França, um primeiro ministro, Michel Roccard, propôs a adopção do modelo português de notariado? Aliás, notários públicos existem noutros países, como a Alemanha e a Suíça.
Mudar o modelo só porque o mesmo existia no tempo do fascismo? Será que os senhores do PS e do PSD querem acabar com o subsídio de férias dos trabalhadores, só porque ele nos veio do tempo de Marcelo Caetano?
A França, com razão, quis acompanhar Portugal, no modelo de notariado. Conhecem-se nesse país casos que levaram à barra do tribunal notários, por ter sido posta em causa a fé pública dos documentos que lavraram. De facto, uma das consequências mais graves da privatização do notariado prende-se com a fé pública dos documentos notariais. O vulgar cidadão, aquele que reclama contra as condições em que se desenvolve o trabalho do notariado, porque a escritura não é feita em prazo desejável, porque perde tempo no notário, guarda, no entanto, no seu subconsciente, a imagem de que aquilo que é feito no notário tem uma fé pública inabalável. E é por isso que é vulgar encontrarmos esse vulgar cidadão, depois de um inventário judicial, depois de uma partilha feita nos autos, a exigir que se realize no notário a escritura dessa partilha, sem o que entende não estar completa a mesma.
Continuarão a gozar de fé pública idêntica os documentos do notário privado criado para providenciar à satisfação dos grandes interesses, dos interesses de quem mais lhe paga?
A privatização do notário gera a maior instabilidade nos funcionários dos cartórios notariais. Porque nem todos vão ficar nos cartórios privados. Porque nem todos podem transitar para as conservatórias do registo predial e do registo civil. Muitos vão engrossar os quadros da Administração Central e da Administração Local.
E a acrescer à perda de receitas de mais de 14 milhões de contos, com a privatização do notariado, vai somar o Estado um prejuízo. É que os funcionários que transitam para a Administração Central ou Local, que eram pagos pelas receitas dos cartórios notariais, vão ter de ser pagos pelo Orçamento do Estado!
O Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça já fez as contas. Num cenário simulado em que dois terços dos funcionários dos cartórios notariais transitam para a Administração do Estado, este vai ter de dispor de cerca de 8 milhões de contos para pagar a estes funcionários. Ou seja: esta privatização anunciada vai custar ao Estado cerca de 22 milhões de contos! Em nome da satisfação dos grandes interesses económicos!
À imagem que a insistência na privatização pretende dar, de um notariado português em deplorável estado, responde a esmagadora maioria dos notários com o repúdio de tais afirmações. Com palavras como as que pudémos ler num parecer exarado no Boletim de Março de 1998 do Sindicato dos Registos e Notariado, relativamente à privatização:
«Recusamos que o actual notariado português seja um notariado inferiorizado, anémico, espartilhado, incapaz de responder às exigências da sua vocação.
«Porque queremos o Notariado independente da tirania do público, entendemos que o notário privatizado não pode defender com eficácia esses valores.»
E acrescentamos: Os cidadãos sabem, como já o referimos, que o sistema que existe defende e realiza os interesses da fé pública. Modernizem-se os cartórios notariais. Aos olhos dos cidadãos a actividade notarial surgirá com uma nova dignidade. Esse será o caminho correcto.
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998