O Vaticano e a beatificação do "demónio"
por Rui Paz



A beatificação de Stepicac, o antigo cardeal «cerejeira» e bispo castrense do regime fascista de Pavelic, que escrevia em 1942, na «Sentinela Croata», ser «Hitler enviado por Deus», constitui uma provocação não só às vítimas do nazismo e aos católicos democratas mas também aos sentimentos democráticos de toda a humanidade.

E não se invoquem argumentos de ordem religiosa para justificar esta monstruosa política praticada por um Estado com assento nos organismos internacionais como é o Vaticano. Só a intenção de transformar num mártir aquele que pagou com a prisão a instrumentalização dos crentes croatas em prol do fascismo e do nazismo pode ter levado o Estado pontifício a uma tal irresponsabilidade. É que neste caso já nem se trata de passar «grossas pinceladas de tinta branca» sobre a realidade histórica e de colocar «vendas nos olhos» dos crentes menos esclarecidos - para utilizar expressões da extraordinária obra de Saramago «Ensaio sobre a cegueira» - mas de substituir as próprias imagens dos santos pelas do demónio. Dá vontade de aconselhar a justiça espanhola, no caso de se verificar a extradição do general católico praticante Augusto Pinochet - o assassino de Allende e de milhares de patriotas chilenos que com as mãos manchadas de sangue costuma comungar em uniforme militar - a não o condenar, se não os católicos e os democratas do mundo inteiro ainda se arriscam a vê-lo canonizado pela Cúria Romana.
A falsificação dos acontecimentos, a legitimação de um nazismo e fascismo, sem holocausto, mas com tarrafal à Salazar e fuzilamentos à Franco tem sido a grande tarefa dos historiadores encarregados pela democracia-cristã de deturparem a história de acordo com os interesses do capitalismo global. E nem Portugal escapa a esta onda de confusionismo histórico, como prova a nomeação de um ex-ministro do fascismo para chefiar as forças armadas do Portugal democrático.
A desresponsabilização dos opressores, colocando-os no mesmo plano que as vítimas, quer se trate dos pides em Portugal, dos SS na Alemanha ou dos ustaches na Croácia, de acordo com aquilo que João Paulo II costuma designar por actos de «reconciliação», integra-se perfeitamente na adaptação do catolicismo oficial às exigências do capitalismo autoritário. A canonização, igualmente recente, de Edit Stein, liquidada nas câmaras de gás hitlerianas, não por ser católica mas de origem judaica, por um regime com o qual a igreja de Roma celebrara uma aliança chamada Concordata e no qual Pio XI depositara «uma grande esperança», constitui mais uma provocação no estilo daqueles que Lech Walesa e os fundamentalistas polacos costumam montar em Auschwitz à comunidade judaica e às vítimas do nazismo. Melhor seria que, em vez de atirar areia para os olhos da comunidade internacional, o Vaticano esclaresse as suas responsabilidades na instauração da maior perversão jamais existente à face da Terra, de Roma a Braga, de Toledo a Berlim, de Zagrebe a Praga e de Viena a Vichy: o nazi-fascismo.

De mãos dadas

Quando Roma, a 10 de Janeiro de 1984, restabeleceu com os Estados Unidos as relações diplomáticas interrompidas desde 1867, o primeiro embaixador americano junto do Vaticano, o multimilionário texano Willam Wilson, amigo e confidente de Reagan, afirmava só conhecer dois estadistas capazes de conduzirem consequentemente o combate contra o comunismo - o Papa e o Presidente. Wilson acabava de repetir a apreciação feita em 1933 pelo embaixador polaco Skrzynski após uma audiência com Pio XI: «Hitler é o único chefe de Estado que não só tem a mesma posição que o Papa sobre o bolchevismo, mas que também com grande coragem e sem defectismos lhe declara o combate.» Em 1985, Reagan e o chanceler da Alemanha, o democrata-cristão Helmut Kohl, violentavam a consciência democrática mundial ao prestarem juntos, no cemitério de Bitburgo, homenagem aos mortos da tropa especial do nazismo, a terrível SS, enquanto o presidente do Bundestag, Filipe Jenninger, um amigo pessoal de Kohl e hoje embaixador junto do Vaticano, era obrigado a demitir-se por proferir um discurso ultrajante para as vítimas do nazismo. É demasiada coincidência, mas todos os caminhos vão dar a Roma.
Foi ainda de mãos dadas com Kohl que o Vaticano e a Alemanha federal, unilateralmente e contra a vontade de quase todos os governos europeus e dos próprios Estados Unidos reconheceram a Croácia impedindo qualquer solução pacífica para os Balcãs. A liquidação da influência da igreja ortodoxa e a imposição dos interesses estratégicos da Alemanha naquela região foram executados por uma santa aliança com as consequências terríveis que se vieram a verificar. Os grupos neonazis, que sempre existiram na Alemanha como grupos de luta desportiva (Wehrsportgruppen) prontos a actuar no quadro do plano Gládio da Nato, apareceram então na televisão a dizer que já não precisavam de treinar em território alemão e às escondidas, pois na ex-Jugoslávia podiam exercitar-se com tiros reais e vítimas reais e que era a última oportunidade de matarem comunistas. A Alemanha passou a estar em guerra. De manhã até à noite, em todos os noticiários, o seu correspondente em Sarajevo, Friedhelm Rebeck - uma autêntica cópia do Ferreira da Costa do fascismo português com as suas "crónicas de Angola" - fartava-se de apresentar os sérvios como terroristas e os croatas como santos.
A Bundeswehr conseguiu, com a colaboração da própria social-democracia, intervir pela primeira vez fora das fronteiras alemãs, o que lhe estava vedado pela Constituição desde a derrota militar do III Reich. O cardeal Meissner, nomeado pelo actual Papa em condições extremamente controversas e que os portugueses já tiveram ocasião de apreciar em Fátima a vomitar anticomunismo, pregava aos soldados na Catedral de Colónia que «as armas não são más desde que estejam em boas mãos», isto é, nas mãos da Alemanha. O neonazismo atingiu, não só na Alemanha mas em toda a Europa, uma fase de renascimento e expansão como já há muito não se verificava. O Cardeal Sodano, secretário de Estado do Vaticano, num acto muito contestado, chegou mesmo a receber em audiência oficial o secretário-geral dos neofascistas italianos, Fini. De férias em Portugal, na Páscoa de 1997, tive a sensação de ter voltado aos tempos da guerra colonial ao ver de novo na televisão um capelão militar fardado a louvar a intervenção dos soldados portugueses na Bósnia. Também aqui todos os caminhos vão dar a Roma.
O extermínio do povo curdo pelos militares turcos da Nato obriga a colocar a seguinte questão: por que é que só o capitalismo, a Nato e o Vaticano é que podem decidir quais os povos que têm direito à liberdade e à independência?

Uma benção?

A beatificação de um cardeal croata ligado à dominação nazi nos Balcãs não é tão inocente como pode parecer à primeira vista. Depois de realizado aquilo que o Vaticano considera a liquidação definitiva do comunismo, a fracção mais inveteradamente reacionária do capitalismo institucional lançou-se na confessionalização total do Estado e da sociedade, como se depreende dos ataques constantes de cardeais como Ratzinger ou ainda Lustiger, arcebispo de Paris, e (que ironia) membro da Academia Française, contra o iluminismo, as filosofias «sem Deus» e todas as correntes laicas. Também aqui a história parece repetir-se. Os ataques ao iluminismo constituíram um dos argumentos mais apregoados pelo catolicismo alemão para justificar o apoio à tomada do poder por Hitler. O vice-chanceler do ditador, o católico von Papen, num comício em Colónia em Novembro de 1933 e já depois da assinatura da Concordata pelo cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII, afirmava: «Foi o iluminismo que substituiu pela primeira vez essa ordem desejada por Deus, por uma imagem fraca e monótona da insuficiência e da fraqueza humana… A diferença entre a autoridade e os súbditos foi sepultada com discursos de falsa liberdade e igualdade e, para destruir essa ordem e imagem do mundo, prega a oposição de classes e profissões. Onde Deus separou claramente as tarefas do homem e da mulher, declara-se esta também igual em direitos e nas relações públicas…»
O terceiro Reich de Adolf Hitler constrói-se conscientemente com base nas duas confissões cristãs. Pela primeira vez desde há séculos foram assim reunidas as condições para a Concordata alemã… Tem sido sempre uma benção para a Igreja, cada vez que o mundo se inspira nela…
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998