Resposta a Mc Gowan*
por Miguel Urbano Rodrigues



Foi com algum espanto que li o comentário político (20.10.98) do sr. Gerald Mc Gowan, embaixador dos EUA em Portugal, inspirado por um texto meu sobre Fidel Castro e a VIII Cimeira Ibero Latino-Americana, publicado no JN (8.10.98). A surpresa justifica-se porque os altos funcionários do Departamento de Estado costumam ser menos imprudentes do que o autor deste depoimento.

Em primeiro lugar, o chefe da missão diplomática norte-americana deixa transparecer desgosto pelo uso que faço do substantivo bloqueio para definir a guerra económica (e não só ) que o seu país move a Cuba. Conforta-o o vocábulo embargo. Não entrarei no debate semântico que parece fascinar a Administração norte-americana, mas ao qual permanece indiferente a Assembleia Geral das Nações Unidas, que acaba de aprovar por l57 votos contra dois (doze abstenções) uma resolução que condena as medidas ilegítimas do embargo-bloqueio que atinge Cuba.
Sustenta o sr. embaixador que o bloqueio-embargo não visa «a população cubana, que tanto sofre», longe disso, mas tão somente o governo do Presidente Fidel Castro». A argumentação tem matizes surrealistas. Afinal, quem sofre e por quê? Como explica o sr Mc Gowan que o embargo a um governo, ou seja a Fidel e ao seu Gabinete, apresente já uma factura avaliada em 60 mil milhões de dólares?
Aludindo à Emenda Torricelli, a que chama Cuban Democratic Act, o diplomata quase sugere tratar-se de uma iniciativa filantrópica. Mais adiante fala de 2,2 mil milhões de dólares só em medicamentos distribuídos à população cubana através de ONG's norte-americanas. Omite o sr embaixador que a maioria dessas ONG's tem sido duramente perseguida pelas autoridades dos EUA precisamente por desafiar as proibições da Torricelli e da Helms-Burton. Os dirigentes da mais dinâmica das organizações de solidariedade com Cuba, «Os Pastores para Paz», do Reverendo Lucius Walker, foram repetidas vezes detidos e vexados na fronteira do México, durante a passagem de caravanas com ajuda humanitária ao povo de Martí. Omite o sr.embaixador que empresas cerealíferas argentinas que vendiam trigo a Cuba foram visitadas por funcionários da Administração norte-americana e intimadas a cessar imediatamente esses negócios sob pena de sanções drásticas. O mesmo ocorreu com empresas que forneciam equipamento cirúrgico à Ilha. Uma a uma receberam ultimatos, tal como numerosas empresas petrolíferas. O zelo «humanitário» foi levado tão longe que as fábricas que exportavam pace makers para Cuba entraram também na lista negra norte-americana até cessarem as vendas. Está documentada essa modalidade de «ajuda».
Lamenta o sr. embaixador que o governo cubano tenha recusado generosos donativos de emergência dos EUA no sector da ajuda alimentar. Não diz, porém, que essa oferta foi acompanhada de exigências inaceitáveis para qualquer país soberano. As condições eram humilhantes, equivaliam a uma distribuição feita na pratica sob controlo da CIA.
Repete o sr. embaixador - é da praxe - a conhecida cassette sobre o suposto desrespeito cubano pelos direitos humanos. Está nomeadamente preocupado com a sorte dos «quatro lideres do Grupo de Trabalho Dissidente». Não sei quem são esses quatro senhores e como manifestam a sua dissidência. Mas sei que os EUA são hoje - desde o fim do apartheid na África do Sul - o país com maior indíce de população encarcerada em todo o planeta, com a peculiaridade de a esmagadora maioria dos presos serem negros e latino-americanos. Sei igualmente que l5 patriotas porto-riquenhos cumprem em presídios norte-americanos penas que em certos casos ultrapassam um século. São acusados de um estranho crime: a luta pela independência do seu povo. Alguns foram torturados e permaneceram largo tempo enjaulados.
Sublinha o sr. embaixador que não transmiti o ponto de vista dos EUA. Faço penitência pela omissão. Faltou espaço para recordar, por exemplo, que os EUA somente renunciaram a perseguir empresas ocidentais - como a Sherritt canadiana e a Meliá espanhola - que investem em Cuba, quando a União Europeia tomou a iniciativa de accionar os mecanismos da Organização Mundial do Comércio e acusou Washington de pretender impor a extra-territorialidade das suas leis, violando princípios de Direito Internacional universalmente aceites e o texto de tratados subscritos pelo próprio governo norte-americano.
Repito: foi pouco sensato o sr. embaixador. A sua catilinária quase coincidiu com duas grandiosas manifestações de solidariedade com Cuba do povo do Porto. No Centro de Congressos de Matosinhos e nas ruas da cidade, os portugueses, e muito especialmente a gente do Norte, deixaram transparente a sua repulsa pelo bloqueio cuja defesa o sr. Mc Gowan assume com tamanho entusiasmo. Não seria, entretanto justo responsabilizar o governo do presidente Clinton pela concepção de «ajuda humanitária» vigente nos EUA. Ela vem de muito longe. Tem raízes no século XIX. Quando as tropas norte-americanas desembarcaram em Cuba em l898, supostamente para «libertar» a Ilha, o general Miles recebeu do sr. J. Breckenridge um memorando oficial com as últimas instruções sobre a condução da guerra. Julgo oportuna a transcrição de um dos parágrafos desse documento do Estado norte-americano: «Cuba, com o seu território tem uma população maior do que Porto Rico. Esta consiste em brancos, negros e asiáticos com as suas misturas. Os habitantes são geralmente indolentes e apáticos. É evidente que a iminente anexação destes elementos à nossa própria Federação seria uma loucura, e antes de o fazermos, devemos limpar o país, mesmo quando isso se faça mediante a aplicação dos mesmos métodos que foram aplicados pela Divina Providência nas cidades de Sodoma e Gomorra». Qualquer comentário seria supérfluo.

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*Este texto de Miguel Urbano Rodrigues, respondendo ao depoimento do Embaixador dos Estados Unidos, foi-nos enviado pelo autor, após recusa de publicação pelo «Jornal de Notícias».


«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998