A França desencantada
com o Governo Jospin

por Miguel Urbano Rodrigues



Um sistema mediático concebido para neutralizar, confundir e perverter a consciência social insiste em difundir a ideia de que a França tem presentemente um governo de esquerda. Essa afirmação, monotonamente repetida, deforma grosseiramente a realidade.Tive agora,no final de Outubro, a oportunidade de acompanhar, em Marselha e Paris o movimento dos estudantes do ensino secundário. Somente na capital desfilaram 500 000 pessoas.

Independentemente das reivindicações apresentadas, o protesto desse sector juvenil expressou o descontentamento cada vez mais profundo da sociedade francesa. Foi muito bem recebido. As intervenções, pouco inteligentes e por vezes arrogantes do ministro Allègre, no esforço para minimizar o significado do movimento, tornaram ainda mais transparente o mal-estar que alastra num velho e civilizado povo, inconformado com o projecto de vida irracional que lhe é imposto.
A política do Governo Jospin distanciou-se brutalmente na sua prática dos compromissos assumidos perante o eleitorado, contribuindo para estilhaçar o que restava da sua antiga imagem de esquerda.
Na frente do trabalho as coisas vão de mal a pior. A França vive no ritmo de Maastricht e Amesterdão e o Governo não consegue esconder a evidência: ao aplicar muitas das decisões tomadas no âmbito da União Europeia (e do G-7) entra em contradição frontal com principios que diz defender e estiveram na base da vitória eleitoral do PS. Isso porque a política que desenvolve e pretende justificar é, no fundamental, uma política de direita.
Nas frentes da economia e do trabalho as coisas vão de mal a pior. A transferência de empresas controladas pelas transnacionais prossegue com graves consequências sociais. Os despedimentos maciços são uma realidade. As fereidas abertas pelo encerramento da fábrica belga da Renault não cicatrizaram. Entretanto, o Governo Jospin, que então criticara a irracionalidade e a crueldade do neoliberalismo, recorre a uma argumentação inaceitável e hipócrita para explicar o que acontece no Havre onde milhares de trabalhadores dos Estaleiros vão para a rua.
No início da Primavera de 97, o abandono dos processos de privatização da France Telecom, da Thomson e da Air France, bem como de outros gigantes, era um dos poucos compromissos concretos da Declaração Comum PS-PCF, de l9 de Abril, recebida com esperança pelos trabalhadores. A promessa, porém, foi logo esquecida. A Thomson-CSF e a Thomson Multimedia foram privatizadas; a Aeroespatiale também; e outras.
Le Figaro, porta-voz da grande burguesia, sublinhou que em dois sectores sensíveis o Governo reduziu consideravelmente, quase anulou, a presença e o papel do Estado que neles exercia uma supremacia quase absoluta (2.8.98). Na mesma edição um analista económico escrevia: «Quaisquer que sejam as reticências do discurso e a terminologia empregada - não se fala de privatizações mas de adaptação - os factos estão aí: em pouco mais de um ano a esquerda restringiu o campo de intervenção económica do Estado num ritmo superior ao que fizera o governo de direita que o precedera.»
Jospin não tem complexos - afirmava-se no titulo de um artigo elogioso das privatizações e das aberturas ao capital privado promovidas pelo actual governo, sobretudo nas áreas das comunicações, da banca e dos seguros.
«Le Monde» reconhecia dias depois que Lionel Jospin privatizara, afinal, mais do que Alain Juppé(8.8.98).
A polémica em torno do Orçamento de 99 colocou o Governo numa posição muito incómoda. Sobre Jospin e a sua equipa choveram felicitações discretas do grande patronato. O Primeiro Ministro assumira em 97 o compromisso de alterar o imposto que favorecia os privilegiados, corrigindo uma iniciativa ostensivamente reaccionária de Alain Juppé. Mas nada fez nesse sentido.
O orçamento militar foi mantido no nivel de 200 mil milhões de francos (aproximadamente 7 mil milhões de contos). Nada menos de 100 mil milhões serão destinados num período de cinco anos às armas nucleares. Obviamente a imprensa da direita rejubilou com essa decisão.
Enquanto as verbas sociais permaneciam bloqueadas não faltou dinheiro para armamentos atómicos e para uma reorganização do Exército que favorece a criação de unidades preparadas para intervir na Bósnia, na Albânia, no Iraque, em África, ou, eventualmente, em qualquer país do Leste Europeu.
Entretanto o governo suprime empregos nos hospitais, reduz o número de medicamentos comparticipados pelo Estado, elimina milhares de postos de trabalho no sector da Educação. Lionel Jospin (leia-se PS ) anunciara durante a campanha a criação de 700 000 novos empregos. No final de Agosto p.p. informou (através de Martine Aubry) que o número de contratações de novos trabalhadores atingira 85 000 (79% a prazo).
No tocante aos salários o fôsso entre o prometido e o obtido é ainda mais abissal. Segundo L'Humanité(3.3.97), o cimento de uma Política de Esquerda Comum deveria incluir a elevação do salário minimo (SMIC) para 8 500 francos.
As coisas também aí correram mal. O aumento foi irrisório. O salário mínimo subiu em Julho do ano passado apenas 4%, ou seja uma percentagem igual à concedida por Juppé no ano anterior. Considerado o aumento dos preços, o acréscimo real não ultrapassou 87 francos...
O projecto do Orçamento para 99 não incluiu qualquer aumento para os trabalhadores da Funçáo Pública.
A Lei Quadro sobre a redução do horário de trabalho para 35 horas semanais sem redução do salário - a famosa Lei Aubry apresentada como revolucionária pela propaganda oficial - gerou grandes esperanças pelo mundo afora. Não faltou quem identificasse nela o inicio de uma viragem na política francesa. Cabe dizer que a montanha pariu um rato.
Significativamente, a poderosa União das Indústrias Metalúrgicas Mineiras, ponta de lança do Conselho Nacional do Patronato Francês, manifestou em Julho p.p. a sua satisfação pelos últimos acordos colectivos que abrangem dois milhões de metalúrgicos. Chega-se à conclusão decepcionante de que nas indústrias metalúrgicas se vai trabalhar mais tempo, apesar da redução (hipotética ) dos horários. O novo acordo autoriza por caminhos tortos um trabalho semanal de 39 a 40 horas . Para os quadros, os engenheiros e a maior parte dos técnicos foi definido um regime especial isento de limitações. No tocante a horas extraordinárias o contingente autorizado passa de 94 horas anuais para l80 (até 205 a partir do ano 2000). Não há no acordo, registe-se, qualquer referência à criação de novos empregos.
As ambiguidades na área da política externa são menores do que nas frentes de trabalho e da economia. O duplo discurso é aí desnecessário. O governo de Lionel Jospin tem sido de uma grande docilidade no diálogo com os EUA; submete-se às imposições de Washington e não cria dificuldades à política expansionista e intervencionista da NATO.
Não é, entretanto, sem sentimentos de amargura e alguma inquietação que os franceses das camadas médias acompanham o desenvolvimento de uma situação que há dois anos era imprevisível.
A França foi, nos últimos quarenta anos, o parceiro mais íntimo da Alemanha. A ponte da solidariedade Paris-Bonn exibia uma solidez granítica. Todos os governos franceses foram mimados pelos políticos alemães desde Adenauer. Essa relação aparece hoje sob um novo prisma; descobrem-lhe as fragilidades.Os recentes acordos financeiros anglo-alemães foram recebidos com surpresa e desagrado. Os franceses apercebem-se de que muitas decisões importantes começam a ser tomadas na Europa sem intervenção sua; ficam de fora. Não há aliados preferenciais no jogo do mercado. Novas alianças despontam na Europa. No plano militar a França também se sente marginalizada. A Alemanha revê posições e aproxima-se cada vez mais dos Estados Unidos, dialoga com o Pentágono sem consultar Paris.
Está a acontecer o inevitável. O povo francês deixa transparecer no quotidiano desencanto e temor do futuro. O amanhã próximo aparece-lhe carregado de incógnitas. Poucos fazem previsões, mas cresce o número dos que rejeitam o projecto de sociedade que o governo de Lionel Jospin ajuda a criar através da sua cumplicidade activa com a estratégia da globalização neoliberal. É assunto de que ocuparei proximamente.
«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998