Alemanha
O fim da era Kohl

por Luciano Caetano Rosa



Deve fazer-se um balanço objectivo da política alemã desde a chegada ao poder de Helmut Kohl em 1982 até este Outubro de 1998, tempo de duração dos seus sucessivos governos. É necessária alguma distância temporal, dirão alguns, e não seremos nós a precipitar seja o que for. Há, no entanto, muitos dados disponíveis que já permitem uma imagem fiável do chanceler e das suas políticas.

As forças conservadoras (CDU, CSU), liberais (FDP) e da Social-Democracia (SPD) são unânimes em considerar Kohl como o «Chanceler da reunificação dos dois estados alemães» (a RFA e a RDA), além de lhe atribuírem grande mérito na construção europeia. Passa por ser, pois, o chanceler da reunificação alemã e o chanceler do euro para as forças do centro-direita até às forças da direita mais conservadoras.
Mas há outras forças e vozes no país, como sejam os Verdes, o Partido do Socialismo Democrático, o Partido Comunista Alemão… (Grünen, PDS, DKP…), movimentos de opinião e personalidades independentes que fazem uma apreciação diversa do valor do chanceler cessante.
Logo em 1982, no discurso de tomada de posse, Kohl acusou o governo anterior de incompetente, e responsável pelo desemprego, prometendo combater este decididamente. Repetiu esta promessa em todas as campanhas eleitorais posteriores, mas o que é facto é que o desemprego não só não desapareceu como ao longo dos 16 anos foi constantemente subindo. O desemprego foi para níveis nunca antes conhecidos (ainda em 1998 chegou a atingir 4,6 milhões de desempregados nos números oficiais, embora na realidade os números pudessem ter sido bem mais elevados). A «tarefa intelectual-moral» de combater o desemprego - foi assim que Kohl se expressou no discurso da sua primeira tomada de posse - acabou por nunca se cumprir nos 16 anos da sua governação. Tornou-se, sim, e de ano para ano, numa realidade cada vez mais imoral com o aumento permanente do número de desempregados.
A política de Kohl beneficou sempre, e cada vez mais, os interesses dos ricos à medida que o tempo passava. Já em 1984, o seu partido democrata-cristão (CDU alemão) e o próprio Kohl eram beneficiados com donativos de milionários (Flick, entre outros), no fundo, dinheiros sonegados ao fisco. Foi nessa altura igualmente que um ministro do partido liberal (FDP) coligado no governo com a CDU de Kohl, o aristocrata Conde Lambsdorf se viu em maus lençóis, a contas com a justiça por problemas de fuga ao fisco. Saiu, contudo, perfeitamente ileso dessas trapalhadas e permaneceu na política ora como ministro ora como deputado até à data.

Escândalos e derrapagens

Em 1985, Kohl recebe a visita do presidente americano e leva-o, nas cerimónias protocolares, a depor uma coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido em Bitburgo, região de Eifel, em cujo cemitério se encontram sepultados muitos nazis. O assunto foi considerado um acto de mau gosto em vários meios democráticos e causou um certo escândalo diplomático, mas hoje já poucas pessoas se lembram disso.
Em 1985, numa altura em que americanos (com G. Bush), ingleses (com Thatcher) e os próprios alemães já tinham Gorbatchev razoavelmente nas mãos, Kohl derrapa numa declaração e compara Gorbatchev ao ministro nazi Goebbels, dizendo que o político russo também percebia de (PR - public relations) relações públicas. No Parlamento Federal, o chefe da Social-Democracia alemã da época, J. Vogel, criticaria com veemência a grosseria de modos no chanceler oriundo do Palatinado. Kohl tentou retratar-se no Parlamento, negando que afirmara tal coisa e atribuindo as culpas à revista Newsweek que teria difundido uma afirmação sua de forma descontextualizada. Mas os registos magnéticos provaram claramente o que Kohl dissera, ficando claro que também mentiu, portanto, no Parlamento, já que, por parte da revista, não houvera nenhuma descontextualização das suas afirmações. Esta derrapagem não o impediu de se «tornar amigo» de Gorbatchev, amizade que pareceu sólida até à entrada em cena de Boris Ieltsin. Hoje em dia, Gorbatchev, Gorbi, etc., não passa, para muitos alemães, de marcas de vodka barato que uma pessoa compra em qualquer supermercado.
O grande negócio de H. Kohl dá-se em Julho de 1990 no Cáucaso, num encontro com Gorbatchev em que estavam também Gencher, Chevardnaze e respectivas comitivas. Antes disso, convém dizer que Gorbatchev já havia estado na América conferenciando com Bush e cedera irremediavelmente nalguns pontos. Concordou com a unificação da Alemanha, embora a quisesse fora da Nato. Bush respondeu-lhe que não conseguia ver a Alemanha fora da Nato e achou que os alemães é que deveriam decidir isso. Os acompanhantes de Gorbatchev tiveram imediata percepção de que o presidente da URSS tinha ido longe de mais e acabava de ser enrolado. Nem contrapartidas de «ajuda económica» obteve de Bush. E é no Cáucaso que Kohl, já informado do resultado das conversações com Bush, promete a «ajudazinha económica» a um Gorbatchev aflito com a URSS a desmoronar-se. Foi esse o preço da RDA, uns 35 mil milhões de marcos (mais umas toneladas de carne e salsichas que estavam armazenadas na Comunidade Europeia), preço, aliás, baratucho, segundo terá estimado Lady de Ferro, a inesquecível senhora Thatcher.
Este negócio foi assim realizado, embora poucos dias antes Gorbatchev tivesse telefonado ao governo de Hans Modrow com uma conversa completamente diferente. Em seguida, com o desmantelamento da indústria da RDA, as privatizações de boa parte das infra-estruturas realizadas pela Treuhand (agência fiduciária do Estado alemão) e outras vendas, é de supor que a RDA não tenha custado nada à RFA e que, pelo contário, ainda lhe tenha dado lucros chorudos.

Fiascos e tragédias

Um dia, mais tarde, em Paris, encontrei uns turistas russos e perguntei-lhes o que pensavam de Gorbatchev. Responderam: Durrak! Fiquei sem saber se a palavra significava imbecil, parvo ou traidor. Pensei que a tradução exacta no caso vertente vinha a dar no mesmo. A destruição da URSS já estava consumada com todo um cortejo de grandes tragédias… que se repercutem até hoje. Após a publicação do seu livro «APerestroika», confesso que fiquei entusiasmado com Gorbatchev e até escrevi o artigo «ONovo Pensamento» (recensão positiva publicada no «Diário do Alentejo»). Pensei que o homem estivesse de boa-fé. Afinal, serviu não para reestruturar o socialismo mas sim para restaurar um capitalismo selvagem à moda dos anos 20. É, quiçá, a maior burla do imperialismo neste século prestes a findar.
Kohl e Gorbatchev são ambos políticos que vieram da província (no sentido que este termo tem de pejorativo). Ambos cumpriram um «papel histórico» sobre o qual muito haveria a dizer. Um é agora o «herói» de uma reunificação ou (conforme o ponto de vista) o agente de uma anexação. O outro vai deslizando para um limbo de esquecimento na amnésia colectiva. Já o vi com Raisa, como convidado certamente pago por bom cachet num programa de variedades alemão (parecido aos nossos eventos pimba) e, em certa altura, inspirou-me alguma compaixão, apesar de todos os pesares. Mas adiante…
Em 1990, o chanceler desinteressa-se pela política interna. As directrizes da política económica, de natureza neoliberal, estão nas mãos de ministro do pequeno partido liberal da coligação, o FDP, «o partido dos que ganham melhor», como se auto-intitularam (não sem verdade) numa campanha eleitoral, o que, todavia, os penalizou nos votos. O chanceler vai-se dedicar cada vez mais à política europeia numa base de amizades que constrói com Mitterrand, com Felipe Gonzalez e outros.
A política social do governo de Kohl tornou-se, segundo alguns comentadores, um fiasco vergonhoso, pois neste sector foram «poupados» mais de 100 mil milhões de marcos (algo como 10 mil milhões de contos?) à custa dos mais fracos e necessitados, reduzindo as pensões, os subsídios dos deficientes, dos desempregados, dos beneficiários de ajuda social, etc. Enquanto isto, o FDP não perdia pitada para acarinhar as grandes empresas, deteriorando pensões e salários, aumentando o desemprego…
Um bispo da Igreja Evangélica alemã, a senhora Jepsen, acusou o governo de ser responsável pela pobreza crescente das mulheres, com incidências particularmente graves no aumento da prostituição infantil.
No campo ambiental, houve vários escândalos ligados a deficiências nos reactores atómicos produtores de energia e asfaltou-se um milhão de hectares em estradas e auto-estradas numa clara opção pela indústria automóvel, quando muitas organizações ambientais reclamam a transferência de boa parte do tráfego para os carris e para o desenvolvimento ferroviário.
No capítulo dos direitos fundamentais, das garantias e das liberdades individuais, Kohl e o seu partido conseguiu atrelar o SPD a várias revisões constitucionais. Obalanço é também aqui muito negativo, com discriminação dos estrangeiros, política de estrangeiros xenófoba, agravamento das condições de asilo político, controlos auxiliados por tecnologia altamente sofisticada. Há quem fale de 16 anos perdidos neste âmbito. A repressão aumentou, a escuta telefónica (Lauschangriff) tornou-se legal sob pretexto de combater a criminalidade organizada, houve fogos postos em lares de estrangeiros e outros atentados por parte de organizações da extrema-direita nazi-fascista, com muitos feridos graves e mortos a lamentar.

«Fora de si»

É também no governo de Kohl que, após a recuperação da soberania total, o exército alemão volta a poder entrar em acção nas áreas fora da influência da Nato.
Kohl tolera mal a diferença, mesmo dentro do seu partido, e sempre teve um faro especial para detectar possíveis rivais (normalmente mais cultos e retoricamente superiores - o que, de resto, no caso de Kohl até é relativamente fácil, pois o chanceler cessante nunca se desenvencilhou do seu dialecto do Palatinado, articulando-se num alemão relativamente pouco elaborado). Reiner Geissler, Lothar Späth, Kurt Biedenkopf, potenciais candidatos à liderança da CDU, foram sendo todos «arrumados», ora nos governos dos landes ora em postos de secundária importância.
No campo adversário, Kohl destronou Helmuth Schmidt, derrotou Rau, Vogel, Lafontaine e Scharping, a fina flor do SPD, em sucessivas eleições. Este caso de fortuna eleitoral é estranho e difícil de explicar para a «intelligentsia» alemã, quanto é certo que boa parte dos cabaretistas, caricaturistas, parodiantes, jornalistas, universitários, etc., estão de acordo quanto à pobreza linguística e banalidade conceptual do chanceler cessante.
Kohl sempre teve um relacionamento difícil com os jornalistas, pois via-os apenas como instrumentos que o deviam servir. E quem não dobrasse a cerviz, dando provas de independência, não gozava do seu respeito. Aliás, há quem veja na evolução de Kohl um percurso que vai do democrata conservador, católico, até ao autocrata cada vez mais autista, se calhar também por motivo da longa permanência no governo.
Parece que Kohl (muitas vezes alcunhado de «pêra» - em alemão: birne, por os caricaturistas desenharem a sua cabeça em forma deste fruto) terá sofrido bastante com as anedotas e piadas a seu respeito. Uma vez, em território da ex-RDA, alguns desempregados (que na RDA nem sonhavam com tal estatuto) apuparam o chanceler, acertando-lhe com ovos e tomates na cabeça e noutras partes do corpo porque Kohl lhes havia prometido «paisagens florescentes» nos seus discursos (blühende Landschaften). Fora de si, o homem correu desarvorado querendo afrontar a multidão, tendo só dificilmente sido controlado pelos seus guarda-costas.
Algo se disse sobre este homem que marcou bastante a política europeia dos últimos 16 anos muito mais ficou por dizer.
Hoje, o novo chanceler, Gerhard Schroeder, significou-lhe o seu respeito por motivo da reunificação e o euro, numa passagem de testemunho muito cordata. Dos 666 votos expressos, 665 foram válidos; 351 foram a favor de Shroeder; 271 contra e 27 abstenções. Kohl é agora um deputado do CDU no Parlamento.
AAlemanha tem novo governo, mas será que vai ter nova política? Ter ou não ter nova política, eis a questão para este grande país no coração da Europa!

Nota: Este artigo baseia-se, em boa parte, num documentário televisivo recheado de dados, de testemunhos de personalidades e de documentos fílmicos retrospectivos sobre acontecimentos realmente acontecidos, difundido na noite de 27-10-1998, no canal televisivo alemão Phoenix.

«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998