A TALHE DE FOICE
Descrédito



A terminar a campanha do referendo sobre a regionalização, e independentemente do resultado da consulta popular no próximo domingo, uma primeira conclusão - ou talvez seja melhor dizer confirmação - se pode desde já avançar: em Portugal, o debate político, chamemos-lhe assim, continua a deixar muito a desejar.
Não está em causa a existência de opiniões distintas sobre a mesma matéria, o que é sempre salutar para o debate de ideias. O que está em causa é o facto de não poder haver debate de ideias sem que estejam reunidas pelo menos duas condições, qual delas mais elementar: a existência de ideias e a exigência de seriedade.
Que existem muitas ideias sobre a regionalização não se duvida, mas o que a campanha demonstrou foi que, por razões pouco confessáveis, uma parte dos intervenientes decidiu meter as ideias na gaveta e dar livre curso ao dislate.
Que muita gente séria participou seriamente na campanha também não há dúvida, mas o que fica na memória é a desonestidade com que algumas figuras públicas ou à procura de notoriedade usaram da liberdade de expressão para deliberadamente confundir e intimidar um eleitorado que só poderá fazer uso democrático do referendo se e quando esclarecido.
Nesta campanha não faltaram «regionalistas convictos» a perorar pelo «Não», alegando receios de que a regionalização não passe de um pretexto para criar mais «jobs» para os «boys», receios esses esfumados em passe de mágica caso a proposta fosse a de transformar em regiões as comissões coordenadoras regionais, nomeadas pelo Governo, como fez o truculento autarca de Marco de Canavezes, Avelino Ferreira Torres; ou o professoral Marcelo Rebelo de Sousa a garantir que «a Bélgica é um Estado em desagregação» por ser um país com várias línguas, povos e com grandes divisões..., o que sucederia a Portugal com «esta», mas não com «a outra» regionalização; ou, como assevera o sempre tão discreto António Champalimaud, que a regionalização «seria um passo em frente no caminho da entrega dos nossos destinos a Espanha», no que é acompanhado pelo «regionalista» Jardim, para quem «o mapa cor-de-rosa» da regionalização votado democraticamente pelas Assembleias Municipais não passa de um cozinhado PS/PCP que «empurra portugueses para relações privilegiadas (...) com regiões estrangeiras, do outro lado da fronteira». Ou ainda que Portugal - onde por acaso existem mais de trezentas Câmaras Municipais e mais de quatro mil Freguesias, é demasiado pequeno para ter oito regiões; ou que a eleição de dirigentes regionais «aumenta o caciquismo», «é um voto no escuro e um cheque em branco», significa a «corrupção x oito», só para citar alguns exemplos, como Paulo Portas repetiu até à exaustão, por certo esquecido de que faz parte dessa classe política que grosseiramente rotula de corrupta.
Isto para não falar, naturalmente, de cartazes e autocolantes identificando os defensores do «Sim» com mafiosos, ou das liberdades linguísticas dos meninos «populares» que em tempo de antena do CDS/PP não se coibiram de ostentar um autocolante onde se podia ler «Esta trampa é cara»!
Ideias? Seriedade? Parecem conceitos estranhos à direita portuguesa, apostada em tratar os eleitores com tamanho desrespeito, viciando todas as regras do jogo, usando a democracia para a mentira e a desinformação. O descrédito resultante desta prática está à vista na crescente abstenção e a direita esfrega as mãos de contente entre lágrimas de crocodilo. Afinal, governar é difícil e não é para a populaça. «Eles» tratam do assunto em nome do «bom povo». Se o «bom povo» deixar.

Anabela Fino
«Avante!» Nº 1300 - 29.Outubro.1998