Fé e razão



O simpósio que na semana passada reuniu 50 peritos no Vaticano para debaterem a Inquisição e cujas conclusões - segundo o teólogo pontifício Georges Cottier - se destinam a fornecer ao Papa "os elementos para verificar se há motivo para fazer um gesto de autocrítica" por ocasião do Jubileu do ano 2000, e a recente apresentação da nova encíclica de João Paulo II sobre "Fé e Razão" constituem dois incontornáveis, e de alguma forma inseparados, motivos de reflexão.

Quanto aos tribunais do Santo Ofício da Inquisição - criados no século XIII, com um apogeu terrorista nos séculos XVI e XVII e só extintos no século passado - o juízo histórico, compartilhado pela generalidade dos crentes e dos não crentes, evidencia que eles constituíram uma das mais repugnantes e organizadas expressões de fanatismo e de violência humanas de que há memória. O que custa a compreender é que a Igreja-instituição tarde tanto a reconhecer oficialmente essas páginas negras e pareça ter tanta dificuldade em assumir que elas representam a negação absoluta dos valores da fé que proclama.
Em relação à última encíclica de João Paulo II, solenemente apresentada pelo cardeal Ratzinger, as interrogações situam-se, obviamente, num plano distinto.

É o caso, nomeadamente: da afirmação do Papa de que "a partir do fim da Idade Média, a legítima distinção entre os dois saberes (a teologia e a filosofia) se transformou progressivamente numa separação nefasta"; da acusação que faz a um "espírito excessivamente racionalista", "ao ponto de se chegar de facto a uma filosofia separada e absolutamente autónoma em relação ao conteúdo da fé"; da crítica aos "desvios e erros nos quais o pensamento filosófico, sobretudo o pensamento moderno, frequentemente caíram", associada ao dever da Igreja "reagir de maneira clara e forte" quando "se difundem teorias falsas e partidárias que espalham graves erros, perturbando a simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus"; e da tentativa de confinar a "compreensão correcta de uma doutrina do passado" à sua "recolocação no seu contexto histórico e cultural".

Uma primeira e óbvia constatação é a de que a relação entre a razão e a fé continua a ser um problema não resolvido ao nível da Igreja-instituição, numa altura em que ele já se encontra em grande parte superado de forma não conflituante no conjunto da sociedade.
A segunda constatação vai para aquilo que os nossos olhos de hoje vêem com clareza, com todo o património de experiências, sofrimentos e valores com que a Humanidade chega ao terceiro milénio: é que os fins não justificam os meios.

Edgar Correia
«Avante!» Nº 1301 - 29.Outubro.1998