«...'tou fazendo a louvação»
por Francisco Costa



«Eu quiria ser médjico... A gentje tem qui ser alguma coisa na vida!»

Estas palavras simples e directas, temperadas por esse tão especial sotaque brasileiro, capaz de tornar ainda mais musical a bela língua portuguesa, eram convictamente lançadas por um miúdo mulato dos seus 10 anos, olhando frontalmente a câmara com os seus olhos negros e muito grandes. Um miúdo que «vivia» em mais um desses grandes e miseráveis arrabaldes de Brasília, a cidade cujo arquitecto, Oscar Niemeyer, queria que fosse «uma cidade de homens felizes» e hoje está rodeada de bairros degradados e clandestinos para onde convergem os imigrantes internos em busca de trabalho, e da paga deste em ilusórios «reais».
Poderia hoje falar-vos do esplendoroso barulho das luzes, dos luxuosos e dispendiosos cenários, invadidos por câmaras e gruas moderníssimas em estúdios de produtoras privadas, alugados e pagos a peso de ouro com o dinheiro esportulado à custa de todos nós, contribuintes, para financiar o chamado «serviço público».
Poderia até abusar da vossa paciência e dizer-vos do nojo que às vezes provoca essa avalancha, afinal tão terrivelmente pindérica, de música e fardamentos novos, decotes e smokings saídos da naftalina, play-backs pré-gravados, indicativos gongóricos, gritos histéricos, genéricos tonitruantes, alarves gargalhadas em directo e enlatadas - enfim, de tudo aquilo que, em tempo de novos-ricos e subversão dos valores éticos e profissionais, hoje configura o quotidiano ruído de fundo das estreias das nossas «televisões em português.»
Mas, que querem?, bem mais belos continuavam a ser, na minha memória ainda fresca, esses olhos grandes e negros daquele mulato da periferia de Brasília e bem mais nobres eram as coisas que tinham sido vistas e ditas numa pequena reportagem transmitida em «Sinais do Tempo». Um documentário que, mais uma vez de forma clandestina, o segundo canal do tal «serviço público» se permitiu transmitir na passada quinta-feira 28, no cobarde horário das 00.45 - afinal, uma sorte (!), já que ele chegara a ser anunciado na publicação interna da RTP para uma semana antes (e anulado sem contemplações, certamente por motivos de força maior), com transmissão prevista para uma hora ainda mais escandalosa: a 01.30 da manhã!
Ora a tal reportagem a que me refiro, da autoria de Diana Andringa, falava-nos de gente boa e digna, professores, assistentes sociais, médicos de clínica geral voluntários e outro pessoal paramédico, especialistas e psicólogos, domésticas a meio tempo tornadas «agentes comunitárias» em bibliotecas itinerantes - enfim, gente que se mostrava viva e preocupada com o seu semelhante, inteiramente mobilizada e devotada a melhorar as gravíssimas carências da comunidade em termos de exclusão social.
Estávamos, então, na capital de um dos maiores países da América do Sul, marcado pelas mais escandalosas desigualdades quanto à distribuição da riqueza e, tal como nos era dito no programa, já não era de terceiro mundo que era necessário falar-se, mas sim de quarto mundo - aquele que, no fundo, é constituído pelos milhões de excluídos das grandes metrópoles, formando esse sempre presente (mas ignorado) mundo flutuante da marginalidade urbana, essa imensa multidão de seres humanos afligidos pela pior das solidões: a «solidão acompanhada».
No estado de Brasília, o Governador Cristovam Buarque tinha sido o grande impulsionador de pequenas-grandes reformas, consubstanciadas em meia dúzia de programas inovadores destinados a retirar as crianças ao flagelo do trabalho infantil clandestino para que pudessem frequentar a escola, do mesmo passo criando mecanismos que ajudassem as famílias dessas crianças e suprissem os parcos «reais» que elas levavam para casa. Programas que levaram as pessoas a usufruir de cuidados preventivos de saúde, a criar o gosto pela leitura, fazendo com que, se elas não procuravam os livros, deveriam estes ir até elas, criando «estantes» ambulatórias de 300 livros cada que transitavam de família para família no mesmo bairro ao fim de um certo tempo - «estantes» que, até há pouco tempo, representavam 150 mil livros em 500 diferentes locais, sem esquecer a distribuição gratuita de jornais e revistas.
Chamavam-se este programas, entre outros, «Bolsa-Escola», «Mala do Livro», «Saúde em Casa» e o governador dizia coisas tão simples como estas: «Com 3% do que se gasta em armas no mundo inteiro, podia criar-se um programa destes para 250 milhões de crianças.»
Depois do documentário, houve um debate em estúdio, eficaz e delicadamente moderado pelo jornalista Vasco Trio, com a participação de Rui Cunha (Secretário de Estado da Inserção Social) e Alfredo Bruto da Costa (psicólogo). Devem ter dito coisas muito acertadas e importantes. Mas, pedindo antecipada escusa pela grosseira incorrecção, confesso que o meu ouvido já praticamente não escutava nada, submetido que estava, na importância e peso relativo dos sentidos, ao que a vista descobrira nas fortíssimas imagens ainda recentes.
E, na banda sonora, ecoava ainda a canção de Elis Regina: «'Tou fazendo a louvação, louvação, louvação; Do que merece ser louvado, ser louvado, ser louvado...»

Em tempo: fiquei também a saber, pelo documentário em questão, que o governador Cristovam Buarque acaba de perder as eleições estaduais recentemente realizadas em Brasília.

«Avante!» Nº 1301 - 5.Novembro.1998