Cartas do Brasil
O mito da segurança

Por Zillah Branco


Graças ao interesse da imprensa vamos conhecendo as fragilidades do sistema de segurança no Brasil e no mundo para além do simples assalto que vemos todos os dias atingindo familiares, amigos e vizinhos. Altamente sensacionalista, o crime alimenta os meios de comunicação que enriquecem as suas empresas mas, por outro lado, cumprem a função de informar as habituais vítimas que não contam com os poderes públicos para conhecerem a realidade nacional.

A população acompanha o noticiário dia a dia como se fosse um romance policial onde o detective particular sempre sabe (e revela o que convém) mais do que a instituição oficial de segurança. Assim, começaram as punições de policiais militares responsáveis por chacinas que antes eram perdoados, foram apontados criminosos pertencentes à elite que não consegue mais resolver os problemas com dinheiro ou prestígio, descobriram as ossadas de vítimas da ditadura, conhecemos as caras e as histórias de meninos ricos que se divertem queimando mendigos ou colegas de escola e, também, a de juizes que tudo perdoam aos seus companheiros de classe social. Não quer dizer que a justiça se cumpra até o fim. Se a notícia sair do ar, pode ficar arquivada (como ficaram mais de mil ossadas de vítimas da ditadura no Brasil).
Com algum atraso ficamos sabendo que até o Presidente do Brasil teve o seu telefone vigiado durante a preparação da privatização da TELERJ (empresa telefónica do Rio de Janeiro). Não se sabe se a divulgação foi feita com intuitos políticos ou de mera venda de informação, produto altamente remunerado. O facto é que não existe segurança de espécie nenhuma, nem mesmo para o mais alto poder nacional constituído. Então chamam os responsáveis pela segurança do Presidente para fazer a investigação. Mas, se antes não foram capazes de cumprir a função, serão agora?
O Ministro das telecomunicações diz tratar-se de uma quadrilha de espiões da área industrial que agiu a partir da própria TELERJ. Deduz-se que a segurança (que é militar) do Presidente da República ainda não atingiu a moderna tecnologia e só vê bandido que entra mascarado pela porta dando tiro. Será?...
O que bandido não grava das conversas oficiais são as propostas de aumento salarial (de 8 mil reais para 12.700), que serão feitos em sintonia com os cortes de orçamento em 1999, para que até o Presidente da República receba tanto como foi estabelecido para o tecto da função pública (não esquecer que entre o tecto e o chão, onde está a maioria dos trabalhadores, há uma diferença de 98 vezes).

Fechados com os bandidos

Com as modernas tecnologias a vida foi sendo de tal maneira complicada, inventaram tantas formas de protecção passíveis de arrombamento, que a maior segurança hoje só tem aquele que não atrai a cobiça alheia, ou seja, quem nada tem e nada pode. Basta ver as notícias de assaltos e crimes cometidos dentro de condomínios habitacionais cercados por muros e policia privada.
Bairros de luxo tornaram-se favelas de ricos onde mandam as gangues infiltradas nos vários serviços contratados (um séquito de empregadas domésticas e de manutenção de jardins e infra-estruturas urbanas) e ligadas pelo consumo da droga aos próprios filhos dos proprietários. E os donos das casas ricas estão mais desprotegidos que os das favelas pobres pois, com a vida ocupada em funções sociais e com o hábito de delegarem as suas funções a pessoal contratado (de empregada doméstica a psicólogos), não conhecem ninguém, nem os próprios filhos quanto mais os vizinhos e os empregados.
Defendem as grandes mansões com muros altos, portões de ferro que abrem e fecham com controle remoto (que nem sempre funciona), cães ferozes de raças proíbidas nos países desenvolvidos (que na semana passada mataram uma empregada em São Paulo), mandam os filhos às escolas de carro com o motorista que depois os leva ao psicólogo para resolver os problemas de falta de diálogo familiar, compram todos os mecanismos de comunicação para que os de casa não precisem frequentar a sociedade cheia de pobres (e recebem via televisão ou Internet o maior lixo mental já produzido) e, como não podia de ser, contratam os bandidos sem se aperceberem.
O único sector que cria postos de trabalho em São Paulo, quando o desemprego cresce rapidamente, é o policial tanto militar como privado. O Governo constrói mais e mais penitenciárias, a polícia prende mais e mais criminosos, o desemprego produz mais e mais marginais, a elite ganha mais e mais dinheiro e inventa milhentas formas de protecção inúteis.

A Internet é transparente

Quem utiliza a Internet sabe que não há protecção que valha. Os programas de segurança são imediatamente invadidos pelos racker e, quem estava sossegado enviando informações secretas, de um momento para outro fica nu diante do espião. Numa entrevista da TV Globo com três racker norte-americanos que hoje dão assessoria anti-racker aos clientes que ainda acreditam ser possível haver segurança, ficou claro que qualquer sistema falha. Eles, mestres em programas electrónicos, nem usam cartões de crédito com medo de serem roubados por um "colega".
Um meu amigo estava tranquilo porque o cartão de crédito dele tem a fotografia, o que teóricamente impossibilita a fraude. Qual não foi a sua surpresa ao receber uma conta de 6 mil dólares feita nos Estados Unidos quando ele estava com o seu cartão em São Paulo. Outro caso: eu mesma verifiquei que não chegavam as mensagens que me eram enviadas da Europa e reclamei ao meu contacto da Internet. Constataram que havia um problema e as informações para mim estavam engasgadas na central. Recebi-as todas depois, com o nome do técnico intermediário. Será que ele só tem acesso quando o cliente reclama do problema? O Pai Natal existe? Não tenho qualquer dúvida, o correio electrónico é uma carta aberta, por mais chaves que apareçam.

Conhecemos o quê?

Quando sabemos que o poder, tanto económico como de mando e desmando, está enfeixado nas mãos de uns poucos, que as três maiores fortunas do mundo têm mais que a soma dos produtos internos brutos de 48 países pobres, que um dos grandes ricos monopoliza a estrutura da Internet, que a informação é hoje o mais importante mecanismo de poder, que qualquer menino que saiba usar o computador é capaz de invadir até os programas de defesa do Pentágono (como ocorreu com um dos racker) ou comandar o circuito interno de um prédio inteligente (como também aconteceu no Brasil), que já há empresas de assessoria racker que tanto podem prestar serviços a universidades, bancos, comércio e indústrias, como a formadores de redes criminosas, quando vemos que a investigação científica vai sendo cada vez mais condicionada ao domínio de uma elite imperialista e a um comércio perverso, e que estamos sujeitos a comprar remédios falsificados e produtos alimentares contaminados, e que doentes pobres morrem em hospitais que não avisam a família e mandam os corpos para as universidades (como ocorreu no Rio de Janeiro em mais de 40 casos registados), constatamos que nada sabemos do que nos cerca.
Quem não quiser preocupar-se com a segurança deve evitar tudo o que possa atrair o interesse alheio, apenas cobrir a nudez por causa do perigo das relações impróprias que acontecem até na Casa Branca. Clandestino mesmo só o mais miserável homem do povo, o esquecido da sorte e das instituições.


«Avante!» Nº 1303 - 19.Novembro.1998