A TALHE DE FOICE
A gaffe
A garrafa está meio cheia ou meio vazia? Depende da sede, ou do ponto de vista. E o comunismo? É uma ideologia «simpática» ou uma «ideologia do Diabo»? Depende da página do jornal. Se for a página 25 do Público de domingo passado, ganha a primeira versão; se for a página 27 da mesma edição do mesmo jornal, ganha a segunda.
Nem mais.
Em rigor, as duas
peças, que levam a assinatura do mesmo autor, não são muito
diferentes no seu conteúdo. São antes duas versões do mesmo
tema, que nem sequer se contradizem. O que difere é a forma de
abordagem, a começar logo pelo título. Ambas se reportam a D.
Manuel Falcão, bispo de Beja, e às opiniões do prelado sobre o
comunismo, entre outros aspectos. O primeiro caso titula: «Bispo
diz que comunismo é ideologia "simpática"»,
identificando o agente da afirmação no antetítulo; o segundo,
fica-se por «O bispo e a "ideologia do Diabo"»,
remetendo para o antetítulo a «simpatia» de D. Manuel Falcão
face ao comunismo.
O mesmo sucede com o "corpo" da notícia.
Enquanto na página 25 a questão da «simpatia» aparece logo no
primeiro parágrafo, repetindo-se depois no quarto parágrafo,
explicitando a ideia, na página 27 essa referência só surge no
final do quarto parágrafo, por sinal longo, no meio de outras
considerações.
Na segunda versão desaparece ainda a referência, contemplada na
primeira, a uma anterior entrevista de D. Manuel Falcão ao
jornal, recordando que o bispo «reconhecia que o Partido
Comunista "deu voz" às aspirações do povo
alentejano».
Sendo óbvio de que a publicação das duas versões é uma gaffe
editorial, fica-nos esta oportunidade rara de poder apreciar como
se procede à "limpeza" de um texto que, embora
assinado, pode muito bem ter sido "trabalhado" na
Redacção, como sucede frequentemente aos trabalhos dos
correspondentes. E se é verdade que o produto final publicado na
página 27 não desvirtua, na sua essência, o produto
apresentado na página 25, não é menos verdade que a
comparação dos dois textos permite concluir que a
"limpeza" é tudo menos inocente.
Qualquer jornalista sabe que seleccionar o que se publica e o que
se destaca resulta numa tomada de posição sobre a matéria
publicada. Por mais objectivo que se pretenda ser, escolher é
sempre um acto subjectivo. Faz parte dos manuais de jornalismo o
exemplo da manifestação de massas que termina em distúrbios
levados a cabo por um pequeno grupo de radicais. O que é a
notícia? A manifestação ou os distúrbios? Tudo depende do que
se chama para primeiro plano. Como facilmente se percebe, não é
a mesma coisa dizer que se registaram distúrbios no final de uma
manifestação, ou que uma dada manifestação terminou com
distúrbios levados a cabo por um pequeno grupo. No primeiro
caso, valorizam-se os distúrbios; no segundo, a manifestação.
Sucede o mesmo com a notícia do Público.
Apontar o comunismo
como uma ideologia «simpática» ou uma «ideologia do Diabo»,
ainda por cima no título, não é um acto inocente. É uma
escolha, reveladora do pensamento e/ou das opções de quem as
faz e/ou de quem determina a linha editorial do jornal.
Tudo isto é conhecido e daqui não viria nenhum mal ao mundo,
não fora um pequeno pormenor: é que poucos são os que assumem
esta realidade. A maioria prefere arvorar como bandeira coisas
tão inexistentes como a objectividade absoluta, a imparcialidade
total, a independência sem mácula. O que dá muito jeito para
iludir o público, mas não passa de rematada falsidade.
Valham-nos as gaffes editoriais para lançar luz sobre a
verdade nua e crua. Desta vez, o Público não «errou»,
desnudou-se. Anabela Fino