Motes &
Voltas
Papiniano
Por Jorge Sarabando
A primeira vez que encontrei Papiniano
Carlos foi através da leitura de um poema, a que deu o título
"Coreia".
Era um tempo em que a poesia andava pelas ruas, passava de mão
em mão, segredava, gritava, em lugares repletos de gente, que se
reunia para ouvir palavras que transbordavam das páginas dos
livros.
João Villaret dizia, num programa televisivo, com uma máscara
de chumbo e um olhar que não esquece, numa nota
imperceptivelmente subversiva pois se vivia a guerra colonial, o
"Menino de sua Mãe", de Fernando Pessoa: "No
plaino abandonado que a morna brisa aquece, de balas
trespassado... jaz morto e arrefece...".
Mas o poema de Papiniano tocou-me de maneira diferente:
"Longe, lá nas montanhas geladas... lado a lado dois
inimigos mortos jazem // e quem os veja como poderá saber // se
estão abraçados // ou o que fazem ?".
Sem perder a dimensão ontológica, o que no poema de Pessoa se
exprimia essencialmente como drama íntimo, oferece-nos Papiniano
como tragédia universal, com a impressiva imagem de dois jovens,
"um loiro, outro escuro", mortos em campos opostos, mas
que se diriam abraçados, neles cabendo todo o absurdo da guerra.
Este e muitos mais
poemas de Papiniano Carlos venceram o tempo.
Têm asas que os levantam do chão das páginas e agora voam
livres e são acolhidos por antigos e novos leitores, num mundo
completamente outro daquele que os viu nascer.
Na passada Sexta-feira, num encontro realizado no Centro de
Trabalho da Boavista, para celebrar os 80 anos de vida de
Papiniano Carlos, com a presença de mais de uma centena de
amigos e admiradores da sua obra literária, voltou a acontecer
este encontro com a poesia que não tem idade.
Os textos ditos pela actriz Paula Marques e Arriscado Magalhães,
acompanhados pela música de Paulo Vaz de Carvalho, trouxeram-nos
de novo a insubmissão de mãos dadas com o deslumbramento da
vida, a opressão como reverso da solidariedade humana, a
violência como anulação do amor, ou essa verdade primordial de
que é possível, e há-de chegar, um tempo livre e justo para
todos. Conquistado pela luta, e também com poemas que ainda
refulgem com cristais nestes dias baços e torpemente vulgares.
O escritor Papiniano Carlos é inseparável do lutador
antifascista.
César Príncipe e Arnaldo Mesquita deram, nas suas
intervenções, num mesmo retrato de duas faces, o homem
encantado com as árvores que vê crescer e florir junto de sua
casa, e o apoio discreto da acção clandestina, do Partido,
sempre certo, confiante, sereno, corajoso.
Os torcionários da PIDE bem sabiam da existência de um tal
"Garcia" mas não chegavam ao nome verdadeiro. Uma
secreta alegria para o preso Arnaldo Mesquita, quando os
interrogatórios insistiam em saber quem era Garcia sem desvendar
o companheiro. Papiniano explicou o pseudónimo por si escolhido
em anos tão afastados: era um admirador de Federico Garcia
Lorca.
O escritor Francisco
Mangas escreveu na saudação que enviou:
"Os seus livros, Papiniano Carlos, disso não tenho
dúvidas, ajudaram a desmascarar o fascismo. A que maior glória
pode aspirar um escritor?"
E Óscar Lopes, numa
mensagem que é também uma apaixonada e lucidíssima síntese
sobre a história colectiva e sobre um percurso comum, diz:
"... há muitos anos que sei de cor aquele poema da Ave
sobre a cidade, que ainda hoje é actual, e que para mim
próprio repito, cada vez mais convicto, através de todas as
mudanças: Esta ave não morre! Esta ave não morre!... Obrigado
pelo teu companheirismo, que me ajuda a ter uma confiança cada
vez maior nas luzes e meios disponíveis neste tempo que nos
resta, como seres individuais: se sou, e cada vez mais,
materialista, é porque acredito no futuro que já aqui está a
ferver nas minhas palavras, mas que é mais irreprimível do que
tudo o mais: o meu discurso, a minha razão são mais
invencíveis do que tudo o que se lhes oponha, são dialécticos
e nascem da evidência".
Foi assim na
sexta-feira: um reencontro com Papiniano Carlos, e Olívia,
simples, generosos, atentos aos outros, voltados para a vida e
para a luta.
Como sempre.