Tvisto
Eram não sei quantos mil

Por Correia da Fonseca


O regresso de Maria João Seixas à programação da TV2 foi decerto um motivo de festa para quantos sonham com uma televisão asseada, inteligente, enriquecedora de quem a olhe. E fascinante, não apenas mas também pela presença da própria Maria João Seixas, sem dúvida a gaga mais carismática e interessante do minimundo da TV portuguesa e seus arredores. Terá sido motivo de festa até para os que Maria João já algum dia feriu com decepções, como que a confirmar que nem tudo são rosas mesmo no território da aliás empalidecida rosa. Restam a esperança de que tais momentos amargos não se repitam muito e a convicção de que a vinda de Maria João Seixas corresponderá sempre a um saldo muito positivo.

A actual rubrica de Maria João intitula-se «Olhos nos Olhos» e veio desta vez falar-nos do crime ocorrido em Santiago do Chile no dia 11 de Setembro de 73. Só por acaso a emissão coincidiu com a detenção em Londres de Augusto Pinochet: a própria Maria João Seixas no-lo explicou, referindo que a escolha do tema teve a ver, isso sim, com o vigésimo aniversário do golpe, não com o então imprevisível pedido de extradição do juiz Garzon. De qualquer modo, ainda bem que a coicidência ocorreu: assim a RTP contribuiu, ainda que só no seu segundo canal e em horário de acesso difícil, para equilibrar a ofensiva mediática que um pouco por todo o lado se desencadeou em defesa do militar que desonrou milhares de vezes a farda suja de sangue (uma vez por cada torturado, por cada assassinado, segundo as minhas contas) e agora se entrincheira, cobarde, por detrás de uma alegada imunidade diplomática conseguida pela forma mais abjecta.

O sangue e a esperança

Esta emissão de «Olhos nos Olhos» teve como que duas fases: uma delas preenchida com a transmissão do breve filme «Chile, Memória Obstinada», de Patrício Guzmán, e outra por uma conversa com Mário Dujisin, que em Setembro de 73 era colaborador do governo de Unidade Popular do Salvador Allende e desde há vários anos se acolheu em Portugal, terra onde se sente tão perfeitamente que lhe suscitou não um projecto de vida mas sim, como ele próprio disse, um «projecto de morte», isto é, onde tenciona ficar até ao (seu) fim. «Chile, Memória Obstinada» é um testemunho impressionante e muito bem construído sobre diversos pontos importantes: o metódico assassínio da memória perpetrado por Pinochet e pelo pinochetismo, a sobrevivência de um espírito de resistência que nem décadas de terror repressivo nem a tão propalada melhoria económica (conseguida à força de injecções de dólares vindas dos States, que assim financiaram o pós-massacre tal como antes tinham apoiado o golpe) conseguiram erradicar, o reverdecer da esperança sensível nas palavras reflectidas de alguns jovens. Algumas sequências são particularmente impressionantes, e não necessariamente as de teor mais trágico: por exemplo, o momento em que assistimos a que, 23 anos depois, o «Venceremos» voltasse a soar nas ruas de Santiago executado por uma improvisada banda juvenil.

Quanto à conversa com Mário Dujisin, talvez tenha sido demasiado longa: percebeu-se que a Maria João Seixas custava terminá-la, como se ao fazê-lo fosse abandonar de novo ao semiesquecimento, ou pelo menos à resignação impotente, o Chile democrático que ainda não ressuscitou inteiramente e o Chile socialista cujo retorno ainda nem se pressente no horizonte. De qualquer modo, algumas informações/confirmações prestadas por Dujisin foram preciosas, sobretudo para os telespectadores jovens que, também por cá, têm sido cuidadosamente mantidos em ignorâncias várias e mergulhados em densos nevoeiros de confusão. Assim, Mário Dujisin disse que, ao contrário do que muito se sugere, Allende não estava próximo de ser um comunista pleno, estando mesmo «não muito à esquerda de Mário Soares» (oxalá o espírito do presidente assassinado não tenha passado mal, caso tenha ouvido esta). Disse que é falso não ter havido completa liberdade de expressão sob o governo Allende. Disse que o actual regime chileno é uma «democracia protegida» pelo exército, eufemismo que Maria João ouviu com um brilho de entendimento irónico nos olhos e que significa que o fascismo alimentado a dólares ainda é, afinal, decisivo.

No final, Maria João Seixas teve uma espécie de coragem específica, porque já não cai muito bem citar, com evidentes admiração, momentos com sabor a epopeia nestes tempos de acomodação e miopia. Lembrou a frase de Allende, pouco tempo antes de morrer no La Moneda bombardeado: «Vale a pena morrer por tudo aquilo sem o qual não vale a pena viver.» Por mim, gostei de ouvir este sinal de que Maria João Seixas continua a querer situar-se no lado da vida em que vale a pena estar acompanhado.


«Avante!» Nº 1303 - 19.Novembro.1998