Mulheres dos cinco Continentes apelam à
Mundialização da solidariedade

Por Noélia Oliveira


«Nós representamos milhões de mulheres dos cinco continentes, com diferentes condições de vida, culturas e experiências.
Temos em comum a vontade de lutar contra tudo o que viola e ameaça os direitos das mulheres, a sua dignidade e integridade, assim como a segurança dos povos.
Em comum aspiramos à igualdade, à independência, à soberania, à justiça social e à Paz.
Unidas na Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM), cada uma de nós encontra mais força na solidariedade com as outras, para quebrar os muros do silêncio e libertar a palavra das mulheres».

Esta é uma das passagens que integra o Apelo às Mulheres do Planeta, aprovado por aclamação no final dos trabalhos do 12º Congresso Mundial da FDIM. Seiscentas mulheres de 112 países, reunidas em Bobigny, França, nos dias 19, 20 e 21 de Novembro, comprometeram-se em ser agentes, ainda mais activas e empenhadas, para que o terceiro milénio seja o Milénio da Mundialização da Solidariedade, da Liberdade e da Igualdade dos Sexos.

No Apelo que será difundido por todo o mundo, as mulheres da FDIM afirmam-se «solidárias com todas aquelas que são as primeiras vítimas das políticas económicas, tais como o neoliberalismo e a mundialização dos capitais, fontes de desemprego, desigualdades e de misérias», com «todas aquelas que sofrem a repressão, a prisão, a ingerência, a intervenção estrangeira, o bloqueio». Com todas as que vivem «nos territórios ocupados, que são deslocadas, deportadas e refugiadas».
No mesmo documento declara-se a solidariedade com todas as que «sofrem as violências nos seus corpos, violações em tempos de guerra e de paz, mutilações sexuais, tráfico, violências na família, o racismo, o integrismo, a xenofobia e a negação da sua identidade cultural».
«Face a estes sofrimentos, a estas injustiças - reafirma-se -, nós tomamos a palavra, resistimos, defendemos nossos direitos, lutamos contra todas as discriminações, todas as dominações. Nós queremos participar nas decisões que nos dizem respeito e que dizem respeito ao futuro de toda a humanidade. Somos milhões a procurar os caminhos da nossa emancipação e somos solidárias com todas as que lutam pelo progresso de toda a humanidade. Queremos um mundo livre de armas nucleares, um mundo de Paz.»

Coragem

Na sessão de abertura dos trabalhos e perante uma sala completamente cheia de mulheres vestidas de acordo com o seu país e região de origem e de muitos convidados, a presidente da FDIM, Sylvie Jan, fez o balanço do trabalho realizado desde o último Congresso e apresentou algumas linhas de acção que a FDIM deverá desenvolver, no próximo quadriénio.
Sylvie Jan começou por saudar a coragem de todas as mulheres que conseguiram ir até Bobigny, vencendo todo tipo de obstáculos: libertarem-se das responsabilidades no trabalho, na família, nomeadamente as que têm crianças pequenas, arranjarem dinheiro para as passagens, obterem vistos a tempo e enfrentar as polícias, em particular nas regiões onde há conflitos armados e correm riscos de intimidação e de repressão quando regressarem aos seus países onde os regimes não são democráticos.
Na análise que fez, partindo de 1994 e sublinhando a importância que a Conferência de Pequim representou em 95, para o reconhecimento, defesa e reforço dos direitos das mulheres e das suas organizações, Silvie Jan afirmou que, a FDIM «multiplicou por três, em três anos, o número de associações filiadas, passando de uma rede de 60 para 200 associações distribuídas por 100 países».

800 milhões de pessoas
com fome no mundo

Recordando que a FDIM nasceu «da resistência das mulheres ao fascismo durante a II Guerra Mundial e do seu compromisso em unirem-se para construir um mundo sem armas, um mundo de Paz», a presidente da FDIM denunciou que, desde 1993, cresce a «mundialização neoliberal, que as forças retrógradas, as forças de direita e extrema-direita se tornaram extremamente arrogantes», que surgiram numerosos conflitos regionais provocando «milhões de mulheres refugiadas, novas violências e novos sofrimentos», bem como «a feminização da pobreza que se impõe tanto a Norte como a Sul». Continuando a caracterizar o mundo tal como está, colocou duas interrogações: «Como pretender dar oportunidade ao 3º milénio enquanto milhões de mulheres procuram a sobrevivência para elas e para os filhos? Como acreditar no futuro de um mundo onde a fome se tornou uma arma política? Utilizada com fins políticos ou económicos», respondeu, «esta arma é a consequência de uma estratégia visando reduzir certas populações consideradas incómodas, ou então para conquistar terras.»
Há, denunciou Sylvie Jan, «800 milhões de pessoas com fome. A grande pobreza é também uma dura realidade nos países industrializados. Mais de 100 milhões de pobres procuram sobreviver nos países ditos ricos». E as mulheres e as suas associações têm denunciado sistematicamente estas situações.
Deu muitos exemplos críticos demonstrativos de como as forças conservadoras não só não respeitam a dignidade das mulheres, como as desprezam. Considerou «hipócritas e criminosas» as múltiplas «declarações do Papa que pregam o retorno da ordem moral, atacando a contracepção, a IVG e o nosso direito de utilizar preservativos, contra a propagação da SIDA».

Tomar a palavra
com urgência

«Sofremos demasiado e os desafios são demasiados sérios, por isso procuramos soluções eficazes e duráveis. As mulheres possuem nelas uma parte destas soluções. As mulheres estão cada vez mais conscientes e querem participar nas tomadas de decisões dos homens a todos os níveis», salientou a presidente da FDIM. «Esta nova exigência representa uma esperança para todas e para as sociedades. A noção "da partilha dos poderes" colocou de maneira nova o conteúdo da democracia. Se não pretende resolver a questão das desigualdades sociais entre humanos, as relações de dominação entre classe social, a partilha dos poderes é um precedente a toda a verdadeira democracia», acrescentou.
«Não se pode falar de vida democrática sem ter em conta as preocupações, as propostas e experiências das mulheres. No mundo de hoje, as mulheres ocupam menos de um terço das posições de direcção e somente 12 por cento dos lugares parlamentares e 7 por cento dos postos ministeriais». « Queremos», reivindicou, «mais mulheres eleitas, com a sua diversidade social, para fazer avançar em todos os domínios os direitos das mulheres. A sua palavra tem de ser tomada em conta, com urgência.»

Marcha Mundial contra a Pobreza

Para Sylvie Jan, o plano de acção da FDIM, no futuro, passa pela desmultiplicação de encontros com mulheres onde elas vivem, onde elas lutam. Para defender esta estratégia, citou algumas lutas em que a FDIM obteve resultados positivos. «Partindo de casos concretos», afirmou, «denunciou-se junto da opinião pública e das instituições internacionais as graves situações de desrespeito dos direitos humanos, em diferentes países ou regiões.» A libertação da argelina Zazi Sadou presente no congresso; a luta em Djibouti para tentar libertar Aicha Dabalé, injustamente presa e apesar de estar grávida. Esta luta durou quase nove meses, fez ceder a ditadura e teve êxito. O seu filho Haroun pode nascer em França. Também Aicha Dabalé estava no Congresso.
A FDIM esteve em Cuba, disse, «em solidariedade para com as mulheres cubanas contra o inadmissível bloqueio americano, em solidariedade com as mulheres das América Latina e da Caraíbas» e «participou em manifestações em Istambul e Chipre».
Saudou e deu o exemplo da «perseverança extraordinária das avós e das mães da Praça de Maio, na Argentina» e que têm ajudado outras mulheres, outras mães de desaparecidos que se têm organizado em numerosos países do mundo».
«Para mudar o mundo», salientou, «é preciso ganhar. Arrancar sucessos é importante para aquelas que ganham. Isso permite, também, a cada uma acreditar em si própria e no seu poder de intervenção com os outros.»
Na sua intervenção, Sylvie Jan chamou a atenção para a Marcha Mundial contra a Pobreza e a Violência que, por iniciativa das mulheres do Quebec, se vai realizar no ano 2000. A FDIM, que integra o comité internacional de preparação, tudo fará para o seu êxito. «Nas razões evocadas para caminhar simbolicamente juntas, cada uma no seu país, exprime-se a necessária oposição contra a mundialização da finança», acrescentou.

Com quem está a FDIM

Pouco antes de terminar o seu relatório, Sylvie Jan disse que a FDIM é a «Federação das mulheres humildes, das mulheres pobres, das mulheres que querem defender os seus direitos, daquelas que travam lutas em condições difíceis, frequentemente sem meios, e todas têm necessidade da nossa solidariedade». «Somos a FDIM das feministas que querem fazer evoluir as mentalidades, que lutam contra todas as discriminações sexistas, que querem decidir plenamente, livremente a sua vida. Somos a FDIM das associações femininas empenhadas no reconhecimento do trabalho das mulheres a Norte como a Sul. Somos a FDIM das mulheres pacifistas que querem um terceiro milénio sem armamento nuclear. A FDIM está com aquelas que recusam o racismo. Estamos com as associações empenhadas hoje, de maneira nova, numa real igualdade na prática desportiva.»
«Temos muito a fazer para ajudar as mulheres a romper o seu próprio silêncio que conduz a tantos sofrimentos e a tantas revoltas abafadas. Nós queremos uma FDIM que ajude a libertar a palavra das mulheres.»

As conclusões dos 12 ateliers realizados sobre diferentes temas integrarão o plano de acção da FDIM.
Uma sessão plenária foi preenchida com testemunhos de mulheres que resistem aos conflitos armados e, uma outra, com um Tribunal contra as violências que as mulheres sofrem nos seus corpos.

Além do Apelo foi aprovada uma Resolução Final.

Sylvie Jan, francesa, e Mayadad Abbasi, palestiniana, presidente e vice-presidente, respectivamente, da FDIM, foram, neste Congresso, reeleitas para os mesmos cargos, por aclamação.
A FDIM tem o estatuto consultivo junto da ONU e da Secretaria de Estado do Trabalho.

Dor e Resistência
Testemunhos

Chamo-me Maria Helena dos Reis, tenho 14 anos.
Meus pais e toda a minha família foram mortos pela Unita. Fiquei abandonada nas ruas. Fui violada 8 vezes. Fiquei muito doente. Não podia andar. Fui recolhida por um centro. Peço-vos, às instituições dos países, para não ajudarem a Unita, porque ela continua a matar muita gente.

Sou Zazi Sadou, argelina,
passei muitos anos na cadeia, por defender o reconhecimento das mulheres contra os fundamentalistas, que se afirmam combatentes de Deus na terra, o braço extremista e armado da sociedade islâmica sub-desenvolvida.

Sou Soha Béchara, libanesa.
Fui presa aos 20 anos, quando da ocupação do Líbano por Israel. Fiquei presa no campo de Khiam, durante 10 anos. Estive seis meses isolada numa cela de 180 cm por 180 cm. Este é o pior campo existente, dirigido por uma milícia local israelita. Fui batida, sofri choques eléctricos. Sofri de tudo. Vi uma criança ser torturada para fazerem pressão sobre os pais. Quando saí, fiquei ainda mais determinada a opor-me à ocupação, a denunciar a desventura das mulheres e crianças que lá continuam presas. Ajudem-nos para que seja fechado o campo de Khiam.

Sou Rabiha Diab e fui dirigente da Intifada.
É dificil contar 30 anos de vida em 5 minutos. Quando criança, tinha uma voz forte, pensava em ser cantora. Um dia, ainda criança acordei com o barulho das bombas e dos tanques israelitas. Tudo mudou na minha vida. A minha voz tem sido utilizada para dar a palavra às mulheres e crianças do meu povo. Fui presa 7 vezes, por períodos de cerca de 3 e 4 anos. Em 1981, passei 12 dias no campo ao frio. Apanhei choques eléctricos, fui obrigada a vestir a farda do exército israelita e apertavam-na até não poder respirar, para me tentarem asfixiar. Não havia leis para me condenarem. Depois de libertada, todos os dias tinha de ir à esquadra do meu bairro. O espírito de resistência nasceu dentro de mim. Um dos meus filhos nasceu quando estava presa. Dei à minha filha o nome de Promessa e ao meu filho o de Orgulho.

(Rabiha Diab é hoje Directora-geral da Juventude e dos Desportos junto da Autoridade Palestiniana.)


Mulheres portuguesas

Em Bobigny, estiveram 11 mulheres portuguesas. As mulheres do Movimento Democrático de Mulheres (MDM). Há muitos anos filiado na FDIM, o MDM integra a direcção do Comité da Europa e da Federação. Participou com 3 delegadas, com direito a voto, nas sessões plenárias do Congresso. Oito intervieram nos 12 ateliers sobre diferentes temas.

Durante o Congresso, o MDM apresentou uma moção de solidariedade com Timor e a proposta de adesão da FDIM aos princípios da Declaração de Brighton.
A deputada comunista Odete Santos foi convidada ao Congresso, tendo participado nos trabalhos do atelier sobre «saúde: protecção social, contracepção, IVG, Sida e doenças sexualmente transmissíveis».
O MDM, através de Rosa Xisto, presidiu ao atelier sobre «trabalho: discriminações sexistas, assédio sexual, não reconhecimento do trabalho das mulheres e o trabalho informal». Foi Rosa Xisto que, na tribuna do plenário, apresentou as conclusões, onde foi reafirmado que no limiar do novo milénio é com acrescida urgência que nos devemos deter na análise do factor que constitui a base essencial da emancipação da mulher: o direito a exercer uma actividade remunerada e a encontrar os caminhos que permitam os passos decisivos que façam a história evoluir mais rapidamente nesta matéria.
No atelier sobre «Informação alternativa? Como mudar a imagem e a presença das mulheres nos meios de comunicação. Luta contra a manipulação da informação», o MDM propôs, e foi aceite, a realização em Lisboa de um encontro de jornalistas e de responsáveis de boletins de organizações de mulheres de todas as associações filiadas na FDIM, em toda a Europa.
Concluiu-se que a Declaração de Pequim, assinada por todos os governos, não surtiu alterações na mudança da imagem, que os meios de comunicação social, nomeadamente os audiovisuais, dão da mulher. Concluiu-se também que a feminização dos jornalistas aumentou por todo o mundo, mas isso não se traduziu numa maior cobertura noticiosa de iniciativas promovidas por organizações de mulheres que tratem de assuntos específicos, ou de outra natureza.
Além de ter participado na preparação deste 12º Congresso Mundial da FDIM, de ter sido responsável pelo atelier sobre o trabalho e de presidir à sessão plenária sobre o «investimento das mulheres no desporto», o MDM foi reeleito para a direcção do Comité da Europa e da Federação, para integrar a Comissão de Finanças da FDIM, para participar no grupo de trabalho de preparação da Marcha Mundial contra a Pobreza e a Violência no ano 2000 e continuará a ser responsável a nível da Europa pelas questões do trabalho. Integrou ainda o grupo que preparou a Resolução Final.


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998