A «política», os «políticos»
e os «partidos»

Por Jorge Cordeiro
Membro da Comissão Política


Não é de ontem nem de hoje esta campanha que alguns, persistente e não pouco inocentemente, prosseguem de amesquinhamento da política e de suspeição sobre os políticos, orientada em última instância para afastar cidadãos da política, reduzir a sua intervenção e participação na vida democrática. Ou seja, para, com base nesta campanha, irem alimentando aquele caldo de desinteresse e amorfismo tão necessário ao esbatimento da resistência que tanto lhes facilita a promoção das políticas que prosseguem.

A técnica desta campanha é conhecida. Invariavelmente baseada na generalização de comportamentos, sem cuidar da observação elementar de quem diz e faz o quê, credibilizada em factos e actos de abuso condenáveis mas quase sempre inimputáveis de personalidades com responsabilidades e notoriedade públicas. Com a singular curiosidade, de ser alimentada e promovida por digníssimos representantes dessa mesma classe política e de uns quantos cidadãos que, em nome de uma cidadania livre do vírus partidário, carreiam argumentos sempre em sentido convergente com a posição de alguns partidos. A que haverá ainda a juntar aquela interessante cambiante de procurar dissociar governo e política na linha da repetida máxima "uns fazem política, outros governam".

Da onda dos argumentos que são jogados e do emaranhado de afirmações, escritos e opiniões que incansavelmente alguns vão ampliando numa espiral de repetição mútua (mas sempre apresentada com aquele ar de novidade e elaboração própria) emergem entre algumas outras, três teses essenciais.

A contraposição da política à governação, atribuindo à primeira a fonte de todos os males e problemas e apresentando a segunda como actividade acima de qualquer suspeita e politicamente asséptica. À primeira são associadas e estigmatizadas as posições dos que assumem e corporizam a oposição e a luta contra a política que impõe valores dominantes; enquanto que à segunda é atribuída a imagem de uma acção dominada por critérios estritamente pragmáticos e de condução arbitral da vida e dos destinos de todos nós.
A intenção é clara: iludir que nos governos se sedia o poder de conduzir e concretizar políticas, que os partidos organizam interesses de classe e que a luta que travam para ter acesso ao poder de decidir é feita para aí promoverem e imporem, pelas leis e meios do Estado, os interesses de classe que representam. Num quadro e envolvência naturalmente mais complexos que a linearidade do que atrás está dito permite constatar, mas em que as contradições reais existentes entre a base de apoio de alguns partidos e a sua orientação política dominante e o esforço permanente de procurar decorar a natureza da sua política de modo a assegurarem os apoios que lhes permitam manter a sua base eleitoral, não eliminam o que substancialmente ficou afirmado.

A difusão da tese de que os Partidos são todos iguais alimenta o pasto que visa assegurar a continuidade no poder da mesma política e tolher ou bloquear vontades de mudança.
Difundida e estimulada ciclicamente por aqueles mesmos que com a sua política conduzem à descrença amplos sectores da população, a repetição desta ideia tem em vista desvalorizar as possibilidades de uma alternativa, tornar dispensável o simples acto de exame de comparação entre partidos e políticas que conduziriam á conclusão de que afinal há quem seja diferente, conformar todos quantos aspirariam a uma mudança a aceitarem, resignadamente, a política que lhes é imposta na base do pressuposto que, mude o que mudar, tudo continuará como dantes.
Vivendo de uma base que a credibiliza, (a quase plena similitude que une PS, PSD e PP), e alimentada pela mercantilização a que estes partidos conduziram a actividade política, degradando-a aos olhos dos portugueses, esta tese visa, no essencial, dificultar a aproximação e a avaliação crítica e independente por parte dos cidadãos da actividade do PCP, das suas propostas e do seu projecto.

A terceira e última tese - emergente de uma forma mais consistente no decurso dos recentes referendos, alinhada pela lógica de estigmatização dos partidos - procura opor partidos a movimentos de cidadãos, definindo para aqueles áreas em que teriam legitimidade para intervir e chamando para estes os temas e causas que classificam como de cidadania.
Uma tese sustentada na teoria, entretanto elaborada, que os partidos, ainda que sempre com o PCP no pensamento por mais que o procurem disfarçar, condicionariam a livre vontade da expressão eleitoral, só garantida pela iluminada e não condicionante intervenção de alguns ilustres cidadãos…

Passando adiante da baixa consideração porque é tomado por estes teorizadores o conjunto de portugueses e portuguesas, e não deixando de recordar, a quem aparenta distracção, que os partidos são na sua essência grupos de cidadãos estavelmente organizados, não deixa de ser oportuno anotar duas observações.
A primeira, para fazer notar o estranho e suspeito processo genético que esteve na origem de alguns dos movimentos, onde se encaixaram os principais mentores destes teóricos que intervieram nos últimos dois referendos.
Para além da indiscutível independência e descomprometimento partidário de cidadãos como Cavaco Silva, Manuel Monteiro, Bagão Felix, Proença de Carvalho, Miguel Sousa Tavares ou Nobre Guedes …
A segunda, para trazer à memória que algumas das páginas de ouro de demagogia e falsificação, destinadas à propositada desinformação dos eleitores nestes dois últimos referendos, foram protagonizadas por aqueles mesmos que se auto-proclamam defensores da livre e consciente escolha dos portugueses.
Bastaria recordar as rábulas de Bagão Félix no referendo da IVG ou de Proença de Carvalho no referendo da Regionalização para não ser preciso acrescentar seja o que for. Mas talvez a intervenção mais fiel do que move esta corrente de pensamento tenha sido dada pela ex-juiza do Tribunal Constitucional, Assunção Esteves, ao manifestar-se de forma indignada, na própria noite do referendo de 28 de Junho passado, pela ousadia que o PCP cometera ao intervir com voz e pensamento próprios nessa batalha política: deixar nas mãos de alguns, que entre si são quase o mesmo, a formação de opinião e a conformação de vontades de acordo com aquilo que melhor serve os seus interesses e dos partidos a que mais ou menos formalmente pertencem.

Rejeitando generalizações e ver-se transformado em farinha do mesmo saco, o PCP assume por inteiro a sua condição de partido que faz política norteado por critérios de verdade e com o objectivo de colocar toda a sua força, saber e determinação na luta pela dignificação deste povo e o progresso deste país.
Um Partido que é e se assume como diferente. Que não eleva a mentira e a demagogia a critérios de sucesso político. Que rejeita a chicana e o manobrismo como expoentes da sua táctica política.
Um Partido que credibiliza a acção política pela verdade, pela entrega às causas e pelo respeito com os compromissos assumidos.
Um Partido que não pretende apenas assumir-se como representante de interesses por delegação de confiança e que, recusando concepções que vêem na população sujeitos passivos, procura influenciar e estimular a intervenção dos cidadãos e dar-lhes consciência de que a sua participação encerra em si força social transformadora.
Um Partido que se assume como é, de classe, no qual se revêm e cabem todos quantos lutam por mais justiça social, mais direitos, melhores condições de vida, e que toma em suas mãos os seus objectivos.
Um Partido que pela sua prática e pela sua palavra contribui para dar valor e sentido àquela mesma democracia que alguns tanto idolatram, mas que diariamente agridem.


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998