Projecto VIDA, parte VI: A extinção?

Por António Filipe


O Relatório sobre a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, recentemente apresentado por uma Comissão independente, propõe ao Governo a extinção do Projecto Vida. Com esta Recomendação, fica definitivamente posta em causa a credibilidade da estrutura emblemática das políticas governamentais de combate à droga nos últimos 11 anos.

Desde a sua criação por Cavaco Silva em 1987, a história do Projecto VIDA tem sido a das suas sucessivas reestruturações. Criado com o proclamado objectivo de assegurar a articulação interdepartamental, no sentido de responder às questões colocadas nas três vertentes que devem integrar um plano de luta contra a droga (a informação e sensibilização do cidadão, o tratamento, reabilitação e inserção social do toxicómano e o combate ao tráfico), o Projecto Vida nunca logrou atingir esse objectivo. Em vez disso, tornou-se a imagem de marca da acção governativa em matéria de combate à droga, dando prioridade a uma forte acção mediática e dando corpo a um aparelho fortemente governamentalizado, que se empenhou em apoiar ou promover acções de prevenção da toxicodependência incapazes de disfarçar a ausência de uma estratégia nacional nesse domínio.
À medida que foi crescendo a exigência social de uma política de combate à droga capaz de responder à gravidade que a situação foi assumindo, foram os Governos, quer do PSD quer do PS, respondendo, no que ao Projecto Vida diz respeito, com fugas para a frente, "reestruturando", "alterando" ou "reformulando" algumas coisas para que quase tudo ficasse na mesma.

De reestruturação em reestruturação

Para que se veja que não exagero, vale a pena recordar sinteticamente, as várias fases por que passou o Projecto Vida ao longo dos seus onze anos e meio de existência:

Parte I – Em 21 de Abril de 1987 o Governo de Cavaco Silva, através da resolução do Conselho de Ministros n.º 23/87, aprovou um plano integrado de combate ao tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, designado Projecto Vida.

Parte II – Em 21 de Abril de 1990, passados precisamente 3 anos, nova Resolução do Conselho de Ministros (n.º 17/90), veio proceder à sua reformulação do Projecto Vida. Afirma-se no preâmbulo da Resolução que, "após uma análise do trabalho realizado, verifica-se ser necessário proceder não só a ajustamentos estruturais e institucionais, mas também à revisão e adequação de algumas das medidas anteriormente preconizadas". Foi então criada uma Comissão Interministerial presidida pelo Primeiro Ministro, um Conselho Nacional presidido pelo Ministro Adjunto, o cargo de Coordenador Nacional para o Combate à Droga, e ainda núcleos distritais do Projecto Vida na dependência dos governadores civis.

Parte III – Em 9 de Novembro de 1992, passados dois anos e meio sobre a anterior reformulação, o decreto-lei n.º 248/92 veio dotar o Projecto Vida de uma nova estrutura orgânica. No seu preâmbulo, afirmava ser "necessário e urgente desenvolver e consolidar uma real e eficaz coordenação intersectorial", e mais adiante, que "o Projecto Vida precisa de apresentar garantias de desburocratização e de coordenação". Em consequência, foi criado o cargo de Alto Comissário para o Projecto Vida e extinto o cargo de Coordenador Nacional.

Parte IV – Afastado o PSD do Governo em Outubro de 1995, decidiu o Governo PS em 8 de Janeiro de 1996 (através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 3/96) que a Comissão Interministerial se deveria encarregar de rever globalmente o enquadramento jurídico do Projecto Vida, que se encontrava "disseminado por vários diplomas de dignidade e força jurídica díspar", dificultando "o entendimento das suas zonas e instrumentos de intervenção".

A Comissão Interministerial passou 7 meses a reflectir e só em 15 de Outubro de 1996 é que o decreto-lei n.º 193/96 procedeu a nova reformulação do Projecto Vida. Assim, a sua intervenção passou a limitar-se ao domínio da prevenção da toxicodependência (deixando de intervir na área do combate ao tráfico), mas em compensação passou a ter uma estrutura bem mais pesada. É que à comissão interministerial com o Primeiro Ministro, o Alto-comissário e mais 8 Ministros, ao Conselho Nacional, e ao Alto- comissário, vieram juntar-se uma comissão coordenadora nacional, presidida pelo Alto-comissário e integrando representantes de 8 ministérios, o Observatório Vida, e 18 núcleos distritais. Em suma, esta primeira reformulação do Projecto Vida operada pelo Governo PS visou acima de tudo dar concretização à célebre política de "jobs for the boys".

Parte V – Em 20 de Agosto de 1998, passados 22 meses sobre a anterior remodelação tão demoradamente reflectida, foi publicado o decreto-lei n.º 266/98 que reestrutura o Projecto Vida. No seu preâmbulo, afirma que o que se pretende, no essencial, "é assegurar a efectiva operacionalidade de uma política coordenada de prevenção da toxicodependência". E para isso, extingue-se o cargo de Alto-comissário e volta a ser criado o cargo de Coordenador Nacional; passa-se o Observatório Vida transitoriamente para o Gabinete de Planeamento e Coordenação do Combate à Droga (do Ministério da Justiça) e definem-se as regras de enquadramento e transição do pessoal do Projecto Vida.

Parte VI – Dois meses depois desta reestruturação, a Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, composta por personalidades de prestígio e mérito unanimemente reconhecidos, propõe ao Governo a extinção do Projecto Vida, com base numa análise atenta das actividades por este desenvolvidas.

Conclui esta Comissão (passo a citar excertos do respectivo relatório) que "a totalidade dos núcleos distritais refere dificuldades logísticas e de recursos humanos"; "a maioria dos núcleos distritais salienta a inexistência de uma política de prevenção clara, por falta de definição de uma linha estratégica a nível central que sirva de referência"; " a avaliação dos programas de acção é quase inexistente"; "o resultado obtido não correspondeu às expectativas"; "o Projecto Vida nunca conseguiu aparecer como a resultante harmoniosa das acções levadas a cabo pelos diferentes serviços e a sua imagem sempre se confundiu com a da estrutura coordenadora"; as linhas estratégicas primaram pela ausência, o que facilitou um clima de apoio indiscriminado e sem qualquer tipo de avaliação às iniciativas mais díspares, a pretexto do conceito de prevenção inespecífica"; "a Comissão considera que a estrutura do Projecto sofreu também os efeitos de um exagerado peso"; "tudo indica uma excessiva burocratização em área que a deveria reduzir ao mínimo"; a dependência dos núcleos distritais dos governos civis não foi uma decisão acertada"; "a imagem proporcionada é a de uma colagem ao poder político, os coordenadores dificilmente se libertam de um diagnóstico de "gente de confiança" e a grande renovação que se deu no rescaldo das últimas eleições em nada contribuiu para afastar esse fantasma".

A conclusão

Perante um diagnóstico tão severo e amplamente fundamentado sobre a situação de uma estrutura pública de intervenção que, depois de ter sido a "menina-dos-olhos" do Governo do PSD se manteve e ampliou com o Governo PS, não é sustentável que tudo fique na mesma, como se estivesse bem.
A este respeito, o silêncio do Governo é profundamente comprometedor. Limita-se o Ministro José Sócrates a afirmar que o Governo é livre de seguir ou não as recomendações da Comissão para a estratégia Nacional de Combate à Droga. Só que, sendo óbvia tal liberdade da parte do Governo, não é menos óbvia a sua responsabilidade perante as medidas que toma, ou deixa de tomar.
Ficou à vista de todos que a extinção do Projecto Vida, e a adopção de um outro modelo de coordenação, é uma medida indispensável para uma política correcta de prevenção da toxicodependência. Ao fugir a essa evidência, insistindo em manter uma estrutura desacreditada, o Governo não fará mais do que demonstrar que está mais interessado em manter o Projecto Vida com os seus defeitos do que em levar a cabo uma política de luta contra a droga em moldes mais adequados.
Se insistir em manter o Projecto Vida nos moldes actuais, de duas uma: Ou o Governo demonstra que o diagnóstico feito pela Comissão não é verdadeiro (o que até agora ainda não aconteceu) ou fica demonstrado que o que o Governo pretende é prosseguir uma política assente mais em fogachos mediáticos do que em medidas realmente importantes.
(PS: Há também o problema dos "boys". É claro.)


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998