Os desígnios insondáveis...
e outras conjecturas

Por Luciano Caetano da Rosa


Novembro de 1998 queima os últimos cartuchos e já se adivinha nalgumas iluminações a época de consumismo que aí vem com o renascimento do deus-menino. Vão chegando as temperaturas frias à Europa: muitos graus abaixo de zero na França, na Suíça, na Alemanha, na Polónia...

Ao atravessar a pé a ponte de Wettstein sobre o Reno em Basileia, fico com a impressão de que um vento matador tem uma lâmina que me quer cortar a orelha direita. Encolho o pescoço, inspiro o ar gelado ruidosamente, sopro para assustar a frieza, puxo a gola do sobretudo para cima e tento proteger-me de tal ventania. Enfim, apanho o eléctrico para Riehen a nordeste de Basileia, vou contente com os filhos que tagarelam que nem dois gárrulos pardais em dialecto suíço-alemão. Queremos visitar uma exposição dos artistas cosmopolitas Christo e Jean-Claude: «Wrapped Trees», árvores embrulhadas no Parque Berower duma Fundação qualquer, ali a escassos metros da fronteira helvético-germânica.

São 163 árvores, entre castanheiros, carvalhos, tílias, plátanos, sicómoros, avelaneiras, chorões, freixos, ameixoeiras, cerejeiras, bétulas, áceres ou bordos e outras cuja designação ignoro ou não identifico. Estão recobertas por um tecido transparente de fibra em poliester (55 000 m2) e atadas para seu aconchego em 23,1 km de corda, tudo produtos da classe operária japonesa.
Sem dúvida que arte também pode ser isto, ou seja, a novidade, o inesperado, as novas perspectivas, as visões nunca antes imaginadas (cheguei a crer por instantes que via fantásticas caravelas em alto mar nos moles de certos volumes), as potencialidades oníricas que há no sonhar dos homens (a tal constante da vida com que Gedeão nos brindava...), até, enfim, as sugestões de ordem prática que desta arte podem advir... Por exemplo: a falta de protecção de hortas e pomares contra as geadas (que nos crestam ou queimam a fruta, fonte de preciosas vitaminas) deixou de ser uma fatalidade natural, pois com tais panejões e o concurso da meteorologia científica poder-se-á em futuro breve evitar grandes quebras na produção frutícola e hortícola.

As árvores tinham piada e os postais ilustrados dessas árvores não me pareciam menos belos do que as próprias árvores. Após umas voltas, lá deixámos as árvores todas muito bem vestidinhas contra o frio e fomos ver o último filme de Spielberg.

A história do soldado James Francis Ryan e seus irmãos é um episódio entre milhões de episódios no massacre da guerra hitleriana contra a humanidade de que o grande capital alemão foi o grande causador (com especialíssimas responsabilidades para o Banco Alemão e o Banco de Dresda – Deutsche Bank e Dresdner Bank – a tal ponto que a Secção de Inspecção Financeira do Governo Militar Americano, O.M.G.U.S., na zona alemã ocupada sob sua influência, chegou a pensar na liquidação para sempre dos dois bancos e na condenação dos seus colaboradores como criminosos de guerra em 1946 – Cf. UZ 20.11.1998, p. 3. Só que, só chegou a pensar... e daí não se passou. E nem se fale, aqui e agora, de outras responsabilidades como as cumplicidades financeiras entre o nazismo e o Vaticano, pois disso trata Mario Guarino na sua obra «I mercantil del Vaticano» (Kaos Edizionil – Mal podiam aqueles inspectores pensar nos desígnios insondáveis que – muitas vezes, mais tarde, como por exemplo no Golfo, mas também antes – levaram e haveriam de levar o grande capital americano e multinacional a fazer a guerra. Este filme permite muitas leituras, algumas, todavia, bem erróneas, como a de se pensar que os nazis só foram combatidos por americanos.

Regressámos a penates.

O telejornal mostrava as primeiras vítimas do frio, em Paris, em Hamburgo, numa pequena cidade polaca: gente desalojada, enregelada, aos milhares, sem tecto, morre hoje um aqui, outro ali, ficam congelados e tesos debaixo das pontes, estiraçados na neve dos caminhos que vão então dar a Nenhures. Alguns bebem álcool para adormecer e nunca mais acordam. Todos os anos se repetem as mesmas cenas desta macabra «peça de teatro» e, normalmente, aqueles que costumam andar com os direitos humanos na boca, nestas alturas não se dá por eles. Cada Inverno na Europa central e oriental, com o frio e a fome para muitos milhares e milhares de seres humanos desalojados (chamem-lhe o que quiserem, clochards, Obdachlose, Penner, a realidade não muda...), cada Inverno representa todos os anos um calvário, um terrível Cabo das Tormentas. Que desígnios insondáveis levam a que muitas destas pessoas tenham de morrer assim todos os anos nestes países industriais ricos? Ou vegetar por essas cozinhas caritativas de sopas dos pobres que por aí aparecem?

Contradições

É uma contradição tremenda do capitalismo, o tal sistema «vencedor», mas, na realidade, o campeão das injustiças onde as verbas do consumismo dos ricos só em perfumes dariam, se calhar, para acabar com a fome no mundo. Dou rédea solta à subjectividade e penso vagamente em coisas contraditórias: em Riehen, comuna das mais ricas do mundo, "felizardas" das árvores vestidas no parque, que às vezes até parecem lâmpadas, ampolas onde os ramos são filamentos e o sol brilha lá dentro naqueles volumes dando luz e calor; por outro lado, infelizardos dos desalbergados, vítimas do capitalismo globalizado que pelas vias do neoliberalismo, da terceira via, do novo centro, do centralismo radical e de outras invenções académicas parasitárias do pensamento único, vai globalizando a miséria crescente do mundo. Que desígnos insondáveis presidem a tanto sofrimento?

Após o telejornal vem um filme sobre o banqueiro de Deus, o Senhor Calvi, gerente do Banco Ambrosiano, propriedade do Vaticano. Um tribunal italiano manda exumar o cadáver de Calvi, sepultado há 16 anos, a fim de ser realizada a terceira autópsia. Subsiste uma dúvida sobre se Calvi se suicidou ou se o «suicidaram» (passe a expressão). Calvi apareceu pendurado debaixo de uma ponte do Tamisa em Londres, mas suficientemente mergulhado na corrente. Enforcado ou afogado? Suicídio? Assassinato? Eis as questões que continuam a preocupar a justiça italiana.
Calvi tinha um forte relacionamento com Monsenhor Marcinkus, um dos braços direitos do actual papa, João Paulo II, para as questões financeiras. Se Calvi e Marcinkus, em conjunto ou em separado, ambos ou só um, tinham contactos com a mafia, é mais um dos tais desígnios bem insondáveis que o filme ou documentário deixa em aberto.
Segundo tímidos cálculos, uns 300 milhões de dólares (do Banco Ambrosiano?) terão ido parar à Polónia, mais exactamente aos estaleiros de Gdansk, lá onde o Solidarinost e Walesa costumavam assentar arraiais. Parece que autênticas excursões de padres polacos, às centenas, chegavam em visita ao Vaticano por esses anos idos, de malas de viagem vazias (ou só com cuecas, ceroulas e similares), para depois regressarem à Polónia de malas cheias da nota americana que as autoridades aduaneiras, por cortesia e/ou respeito sacerdotal, não controlavam. Há vários desígnios insondáveis em tudo isto que o filme deixa perceber.
Toda a estratégia para desestabilizar o chamado Bloco de Leste, atacando em força na Polónia, terá sido firmada entre João Paulo II e Reagan por volta de 1982.
Marcinkus encarregara Calvi de conseguir muitos milhões de dólares dentro de curto prazo, mas acabou por lhe conceder um ano, sem, todavia, jamais afrouxar a pressão sobre ele.
Calvi dirigiu-se à City de Londres (para negociar empréstimos?) vigiado e sem ter conhecimento dos sombras, dois indivíduos, que ficaram alojados no mesmo hotel.
Após a morte de Calvi, Marcinkus fora intimado por um tribunal italiano a prestar declarações, o que nunca se verificou até hoje. Primeiro, o Vaticano interpôs a imunidade diplomática e, em seguida, despachou-o em grande velocidade para a América, fazendo do cardeal um pároco, algures em lugar obscuro.
Do Walesa e do Solidarinost já hoje pouco ou nada se fala. Cumpriram, pelos vistos, o seu papel e tornaram-se prática e teoricamente desnecessários, inúteis, obsoletos.
A família de Calvi deseja reabilitar o banqueiro de Deus que, diz-se, fazia tudo por este papa. Calvi, 12 dias antes de morrer, ainda escreveu uma carta a Woytila, o papa polaco de sua graça, a qual, todavia, ficaria sem resposta até à data.

Lê-se na Bíblia que os desígnios do Senhor são insondáveis. Serão também os desígnios dos homens assim tão insondáveis? Mesmo os de certos homens que passam por representantes do Senhor na terra? Com o tempo que a tudo vai dando talho (como talvez Camões dissesse se vivo fora), quem sabe se um ou outro desígnio não se irá tornando cada vez menos insondável, cada vez mais sondável...


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998