ANACRÓNICAS

Uma questão de justiça


1. A ligeireza, a falta de seriedade e o frenesi tomaram conta do discurso com que a direita, acompanhada por algumas personalidades da área socialista, reagiram à recente decisão do Tribunal da Relação de Lisboa no chamado «caso Leonor Beleza». Desde logo porque, esquecendo as funções constitucionais e legais do poder judicial, revelam uma avidez de imunidade e um desejo de inibição das magistraturas que em nada respeitam as regras democráticas mais elementares. Com efeito, não faz o menor sentido condenar julgamentos populares e excessos mediáticos recorrendo, por sistema e sem qualquer pudor, a formas simétricas de absolvição antes do veredicto idóneo, mobilizando a palavra, a imagem e a influência de gradas figuras dos meios políticos. Que implica o acórdão? A apreciação em juízo, a partir de indícios considerados bastantes para a pronúncia, da matéria de facto respeitante a um processo cuja relevância ninguém de bom senso ousa pôr em causa. Porquê, então, uma tal sanha contra o Ministério Público e os juízes que assinam a peça parcialmente transcrita na Comunicação Social, uma peça passível de crítica por desnecessidade polémica mas incontornável nas conclusões técnico-jurídicas? Dir-se-ia que um súbito toque a rebate agitou os sinos da aldeia em que se movem os ex-governantes, os candidatos a governantes e uns quantos dos que ocupam hoje funções executivas. Prova de mais tanta emotividade, tanto encarniçamento. Chegámos a ouvir o Professor Marcelo Rebelo de Sousa proclamar, naquele seu estilo feérico mas amiúde inclarividente, que jamais erguerá a mão para acusar seja quem for, pertença a que grupo partidário pertencer, pela comissão de actos congéneres dos que são imputados à antiga ministra da Saúde. Se tivéssemos que o levar a sério, decerto esperaríamos, com carácter urgente, uma proposta de lei da bancada laranja visando acabar com os crimes de responsabilidade…
Não é preciso, entretanto, antecipar a sentença do tribunal competente nem privilegiar quaisquer intuitos persecutórios para lembrar as dezenas de mortos, de entre os hemofílicos contaminados pela negligência do Estado, a que se não referem muito os defensores da dirigente do PSD. Lá saberão porquê… Não, não é preciso. E, contudo, o silêncio dessas vítimas desarmadas clama. Um silêncio que poderá ignorar as distinções entre dolo eventual e ilicitudes menos culposas, que não brande a espada dos talibãs por sede de vingança e ódio, mas serenamente reclama o apuramento da verdade e a consequente acção do Direito.

2. Cinco lordes britânicos assumiam, no passado Novembro, um gesto histórico. Abriram caminho à extradição de Augusto Pinochet para Espanha, à guarda de um processo contra si desencadeado por crimes perpetrados na sequência do golpe de 11 de Setembro de 1973. Negando-lhe as imunidades que invocara, sentaram-no no banco dos réus, largos anos após a barbárie que sob o seu comando assolou a República do Chile. Pode o governo de Tony Blair, no domínio das conjecturas e cedendo a pressões de múltipla natureza, vir a anular ou esbater os efeitos práticos de uma tal determinação. O facto é que, sem escamotear problemas que urge resolver – a instituição ou não do Tribunal Penal Internacional, por exemplo –, vivemos um importante momento de reflexão e viragem. De certa maneira, ler-se-á doravante a uma luz revigorada boa parte do conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A impunibilidade talvez tenda a ser um paradigma, no mínimo uma realidade, em perda. Talvez este mundo deixe de se parecer tanto com um santuário para ditadores. E embusteiros de vária casta, gostaria de acrescentar, gente que se serve das fragilidades da democracia para a realização de fins hominosos. Talvez. O tirano de Santiago, como todos os tiranos e afins, menosprezou a memória dos que sofreram o holocausto, a lúcida, terrível, pertinacíssima memória de quantos pereceram, quantos sobreviveram. Assim mesmo, esse resíduo de dignidade e magnitude que se torna património de um povo, dos povos, da humanidade, e emerge na hora inesperada. Pinochet acaba de ver-se derrotado na luta pela imposição da amnésia. Os que promovem diligências e manifestações visando a sua libertação, sob a bandeira dos princípios e garantias que ele reduziu a sangue correndo pelas ruas, pó, cinzas, não entenderam o alcance dessa derrota. E, amalgamando desfaçatez e ignomínia, fazem orelha de mercador a afirmações tão nucleares como as que pertenceram a Lord Hoffmann, ao começo da tarde do dia 25: «Torturar o seu próprio povo não pode ser considerado em direito internacional como uma prerrogativa de um chefe de Estado.» Aguardam-se as consequências. No imediato, porém, fique este frémito a dizer que um tempo outro poderá ter começado, um tempo de justiça, ética e solidariedade, bem diverso do que conhecemos e recusamos. — Manuel de Melo


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998