Lorca e o rio de Brecht


No passado domingo, a TV 2 transmitiu um documentário sobre Lorca. Não espanta: este é o ano do centenário de Lorca e a TV 2 serve para isto mesmo, para transmitir telefilmes acerca de escritores, artistas gente assim, desse modo fazendo de conta de que a televisão pública portuguesa tem preocupações culturalizantes. É claro que não tem. Se as tivesse, a primeira providência a adoptar seria a extinção da TV 2 como gueto cultural para onde são exilados, em regime de campo de concentração, todos os programas que de perto ou de longe justifiquem a suspeita de terem vínculos com a cultura ou, sequer, pendores nesse sentido. Não espanta, pois, a presença de um documentário sobre Lorca na TV 2. Já poderia surpreender um pouco que a sua transmissão ocorresse às 21 horas, como ocorreu, se não fora uma certa tradição de temas de artes e letras, na 2, aos domingos e por aquela hora. Aos domingos, repito. De segunda a sexta-feira, às 21 e 30, a 2 tem a rubrica «Remate» que, como o título deixa adivinhar, aborda uma outra área da cultura. Porque a RTP tem um curioso tipo de abertura: a futebol tem, como é justo, entrada franca no canal supostamente cultural, mas Lorca (por exemplo, Lorca, vida, obra e morte) há-de ficar do lado de fora das portas da «1», onde o direito de admissão é rigorosamente reservado.
Por acaso, o documentário transmitido no domingo pela TV 2 apenas minimamente se referia à morte de Federico Garcia Lorca, e digo-o sem a menor suspeita de que a leveza dessa referência, que aliás o pode ter sido apenas na minha avaliação, tenha tido motivações suspeitas e condenáveis. Aliás, também achei que a poesia de Lorca esteve ali escassamente representada, o que seria tanto mais de estranhar, se fosse caso para estranheza, quanto logo de início um especialista veio dizer-nos que talvez Lorca tenha sido o maior poeta espanhol deste século. O caso é que eu esperava, e de certo modo desejava, que o telefilme falasse mais longamente do assassínio de Lorca pelas milícias fascistas porque se trata de um caso e vários títulos paradigmático de crime contra a humanidade cometido pela extrema-direita. Ora, ultimamente tem-se falado muito de crimes desses a propósito do Caso Pinochet, e nem sempre se tem falado com a lucidez e a honestidade naturalmente desejáveis, indispensáveis mesmo, em matéria tão grave. Lembrar o assassínio de Lorca pode ajudar-nos a ver claro.

Quatro razões para morrer

Nos primeiros minutos do telefilme, veio Edward Albee, que até nem é um qualquer, interrogar-se sobre os motivos do crime e enumerar quatro deles: ser Lorca um intelectual, desenvolver uma intensa actividade de divulgação cultural, integrar-se em iniciativas culturais de esquerda e ser homossexual. Em princípio, parece indiscutível que estes quatro pecados não justificam a pena de morte, nem mesmo no espírito de um hombre muy macho mas minimamente decente ou no de um ardente militante pela ignorância convencida. Mas Lorca morreu sob balas franquistas numa madrugada de Agosto de 36, e não foi o único artista, ou escritor, ou intelectual de esquerda, ou homossexual, que o nazifascismo assassinou em Espanha ou noutro lugar. Pelo contrário, o assassínio deste tipo de gente é prática habitual da extrema-direita quando toma o freio nos dentes.

Por exemplo, no Chile.
Por exemplo, no Chile, mas convém sublinhar que a condição de homossexual não é de modo nenhum essencial para o assassínio sob balas nazifascistas: muito pelo contrário, é apenas circunstancial e complementar. O desicivo, isso sim, é ser de esquerda e agir como tal. E convém fixar o que é ser de esquerda: é querer mudar o mundo para o tornar mais justo, organizar a sociedade de modo a que os que vivem à custa alheia não possam continuar nessa tão confortável situação. É olhar a vida, ferver de indignação e agir em conformidade. Às vezes, muitas vezes, agir com excesso e brutalidade, até porque a condição de espoliado, quando seja o caso, não propicia a serenidade e a contenção. E, então, ocorrem os crimes da esquerda, que também os tem havido. Que os houve na guerra civil de Espenha, onde os defensores da República legal e democraticamente conseguida foram arrastados pela dinâmica da cólera para práticas que o ideário de esquerda não podia consentir. Mas não ficará mal, nem será deslocado, que lembremos aqui os versos que Brecht escreveu acerca da violência do rio que na cheia tudo arrasta e a violência anterior das margens que o comprimiram.

Esta reflexão vem a propósito de Lorca, assassinado em Granada e lembrado agora na TV2, mas também de Augusto Pinochet, detido em Londres e já generalizadamente pretexto para considerações que pretendem, para sua objectiva defesa, colocar ao seu lado, em situação de paridade, alegados «ditadores de esquerda». Os que o fazem invocam a pretensa rejeição da aplicação de «dois pesos e duas medidas». Sem prejuízo de condenar vivamente todas as violências cegas, tem a esquerda a obrigação de lembrar-se de que a adopção de um só peso e uma só medida só é procedente para situações idênticas, equivalentes, simétricas. Não é o caso da equalização, afinal cúmplice com o crime, da brutalidade destinada a barrar o caminho à justiça e da brutalidade que é uma forma de resistência à infâmia institucionalizada. Pois serão brutalidades em ambos os casos, mas não serão iguais, nem equivalentes, nem simétricas. O pelotão nazi de fuzilamento que executou reféns civis não pode ser entendido como a versão, à direita, dos civis resistentes que metralharam soldados invasores nas ruas de uma cidade francesa e que seriam a versão de esquerda do mesmo horror. Ainda que o horror estivesse em ambas as situações. Por estas e por outras é que Augusto Pinochet é um criminoso de dimensão e responsabilidade dificilmente comparáveis, e nunca com alguém de esquerda. Por muito que isto incomode, é claro, os cérebros de direita. — Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1305 - 3.Dezembro.1998