Tânia, a
«guerrilheira» das Fontanhínhas
Quando eu era
pequenina
não havia bonecas negras
O que é ser
cabo-verdiano em Portugal?
Esta a ideia de partida que nos levou aos bairros degradados da
Amadora, para uma conversa com Antónia Nascimento, Tânia, como
por todos é conhecida. Educadora de infância no Centro Social
do Bairro 6 de Maio, moradora desde criança nas Fontaínhas.
Filha dos bairros, povoados de imigrantes e de portugueses,
marcados pelo estigma comum da pobreza. Actualmente deputada da
CDU na Assembleia Municipal da Amadora, eleita nas eleições
autárquicas de há um ano atrás, em que pela primeira vez
puderam votar e ser eleitos estrangeiros.
Entre as Fontaínhas, o 6 de Maio,
ou a Pedreira dos Húngaros, as afinidades são múltiplas. São
os bairros, cercados pela marca da exclusão, da
desconfiança. E onde falta de tudo e os problemas se desdobram
por todas as áreas habitação, saúde, assistência
familiar, educação, formação e informação, legalização
dos imigrantes.
Assim é as Fontaínhas, um exemplo entre outros, de que Tânia
nos dá uma elucidativa imagem. A imagem vivida de quem
veio de Cabo Verde para os bairros de Portugal, com 8 anos
de idade.
Poderíamos começar por referir os mais sentidos problemas do bairro. As casas, o espaço, as condições de vida.
As casas não têm espaço
suficiente. As famílias são sempre para cima de quatro pessoas.
Digamos que o mínimo é quatro e o máximo é 14, 16 pessoas
dentro da mesma habitação. Com três a cinco assoalhadas. As
casas que têm uma parte de cima, terão cinco a seis
assoalhadas. Mas são quartos estreitos, porque o espaço é
pequeno. É preciso fazer muitas gavetas, para arrumar lá
tudo...
Depois, para além do espaço ser pequeno, é muito frio. As
construções são de tijolo e massa. Mas um tijolo fino e uma
massa mal posta. No inverno, por causa da humidade, o tecto e as
paredes ficam molhados. O tecto costuma mesmo pingar. De manhã
as mantas estão molhadas. E quem fica deitado junto da parede,
tem a parede fria e molhada.
Por outro lado, como não há espaço, há poucos sítios para
pôr camas. No mínimo são duas pessoas em cada cama. Mas há
casos de seis crianças a dormirem na mesma cama três de
cabeça para cima e três de cabeça para baixo.
Isto acontece sobretudo em situações em que vivem dois
agregados familiares numa única habitação. Os pais, que têm
os filhos ainda em idade escolar, com os netos, que são já os
filhos dos filhos mais velhos. Que não têm para onde ir morar,
nem dinheiro para comprar ou construir uma casa, e então ficam a
viver com os pais. É a situação mais trivial destes bairros.
Desde a Amadora até Setúbal.
Os filhos mais velhos juntam-se (união de facto) ou casam-se,
ainda muito novos. Normalmente as raparigas aos 16/18 anos e os
rapazes aos 20/23, já estão a dar netos aos pais. E depois o
espaço entre os filhos é pequeno, entre catorze e quinze meses.
Como uma escadinha.
Como se reflecte esta situação nas crianças?
Com os
problemas de habitação e de espaço a criança nasce,
cresce, tem 3 anos, tem 6 anos, mas não tem um espaço para
brincar. Nem tem uma rua. Sai à porta e dá com a cara dentro da
porta da vizinha, pois a sua rua só tem um metro ou meio metro
de largura.
Aqui nas Fontaínhas, a única rua mais larga é aquela em que os
carros passam. E esta rua não é para as crianças, é para os
carros.
Nos outros bairros, é igual.
Qual o nível de escolaridade ou de formação dos imigrantes do bairro?
Os que
nasceram em Portugal após os anos 70 - têm quase todos a
4ª classe. Não mais que isso. E são jovens. É a pobreza das
pobrezas. A pobreza chama mais pobreza. Há um ditado que diz - Quanto
mais riqueza, mais riqueza puxa, quanto mais pobreza mais
miséria vem.
E depois, é tudo. Vêm mais filhos, pois quem não tem
formação não toma a pílula, esquece. Não vai ao médico, vem
a gripe, depois da gripe vai sempre trabalhar, está um ano a
tomar remédios da farmácia sem ir ao médico, depois apanha uma
tuberculose...
É um ciclo vicioso, é uma bola de neve.
Tudo se junta na pobreza. Não é miséria só por causa da
roupa, ou do sapato, ou da comida. É miséria da cabeça,
miséria de tudo.
Nós dizemos miséria da cabeça quando uma pessoa não
consegue gerir a sua vida, não ganha maturidade intelectual. Mas
nenhum pobre tem condições para isso. É o pai que bate na
mãe. É o pai que bebe. Que bate nos filhos. É o álcool que
já lhes vem no sangue. É muita miséria.
Desde que compreendi que isto não está correcto, comecei a
pensar primeiro e depois a fazer algo para que as coisas mudem.
Eu e mais uma centena de pessoas que conheço. Estou a falar das
sessões de formação, das formações profissionais. Parece
nada, mas é alguma coisa.
Que tipo de acções estão a ser desenvolvidas?
Por estes
bairros, em ligação com várias associações - Centro Social 6
de Maio, Unidos de Cabo Verde, associações externas como o
Moinho da Juventude já desde 1985 que se estão a fazer
cursos de formação, todos os anos. De alfabetização, desde 80
até hoje.
Desenvolvem-se também outras actividades. A 6 de Maio, por
exemplo, tem a creche, o jardim infantil, a catequese, o grupo de
jovens, o grupo de viola, teatro, o grupo da Bíblia (só as
senhoras mais velhas), o grupo de ajuda fraterna. Pessoas que se
juntam para fazer coisas.
É o que eu chamo o milagre dos bairros. Para ver se se
acaba com esse ciclo vicioso de miséria.
No fundo ajuda-se as pessoas a conseguirem tudo aquilo a que têm
direito.
Primeiro, um documento, uma identidade. Depois, o rendimento
mínimo. Para as crianças, normalmente há o ATL, há os
jardins infantis. Consegue-se tratar das reformas, dos subsídios
de sobrevivência, pois há aqui pessoas que vieram da província
e que são como os nossos pais cabo-verdianos, população rural.
Trabalharam toda a vida e agora não têm nada.
Tudo isto começou em 1979, com as Irmãs Dominicanas do Rosário
que vieram para trabalhar permanentemente no bairro. E, de uma
comissão de moradores Unidos de Cabo Verde fizeram
uma associação. Depois deixaram a associação na mãos dos
cabo-verdianos e fizeram outra associação, de que nasceu o
Centro 6 de Maio.
Que problemas envolve a questão da legalização?
O problema
maior da legalização é as pessoas não estarem informadas.
Porque se a pessoa não percebe, vai ficar em casa com medo, ou
pensa que não faz mal.
Há jovens que já estão em Portugal desde pequenos, ou que
nasceram cá, e que não estão legais porque não têm o nome
deles no cartão de residência dos pais.
Se os pais não os inscreveram no cartão, por falta de
informação ou porque pensaram são crianças, não faz mal,
para o Serviço de Estrangeiros é como se não existissem.
Os pais pensaram talvez que a sua criança é igual às outras
crianças nascidas em Portugal. Mas não é. Aí começa a
diferença. Uma diferença negativa.
O filho de um estrangeiro tem de ir aos 15 anos ao Serviço de
Estrangeiros fazer o seu cartão individual. Quando tem o nome no
cartão dos pais, tudo bem. Mas, se não o tiver, essa criança
já terá que provar que está na escola, se já tiver mais de 16
anos tem que estar a trabalhar.
Há também adultos que deixaram caducar o seu cartão, por causa
do trabalho, ou do álcool, ou da doença, ou velhice.
Por outro lado, as pessoas que não estão legalizadas, trabalham
sem contractos, têm o ordenado que o patronato quer pagar, não
têm segurança social.
É muito sensível a questão do racismo?
A questão
do racismo é uma coisa sensível mas que, a meu ver, só existe
quando há a diferença de classe.
A questão do racismo em Portugal é, na realidade, uma questão
social, que afecta muito, muito, muito mais, quando envolve
questões de marginalização social.
Há mais racismo para o filho do cantoneiro das Fontaínhas
há mais evidência, há mais trauma, há mais revolta
nessa criança, essa criança é atropelada mais vezes pelo
fenómeno racismo do que para o filho da senhora doutora
negra.
O que é que as pessoas daqui mais gostariam que acontecesse no bairro? Para melhor, naturalmente.
Que fossem
olhados como iguais.
Porque o problema grave, gravíssimo, é que eu vivo neste bairro
desde os anos 70, e sinto que cada ano que passa somos menos
iguais.
É uma desigualdade e um preconceito que cresce.
Há uma insatisfação nacional então vamos lá cair
em cima do imigrante. Em cima do outro, que é diferente, que
é menor. Em crioulo costuma dizer-se o cão mandou o
gato, o gato mandou o rato...
Barram-se as pessoas. És negro, vives nas Fontaínhas.
Barram-te no centro de saúde. Barram-te na porta do
hospital. Chegas à esquadra levas uma tareia. Porque não tens
direitos. Mesmo se fores menor, levas uma tareia na planta dos
pés e é andar para casa e não vais fazer queixa. Porque tens
medo.
Há quem pense a esses podemos fazer tudo o que a gente
quer.
Mas não é bem assim.
Há alguma reacção a este tipo de coisas, mas por vezes muito
mal canalizada. Uma reacção negativa. Mas há outras formas de
reagir.
No meu caso, como menina que cresceu aqui e gosta muito de
Portugal, a minha forma de estar na vida, as actividades em que
eu me envolvo, tudo o que eu faço, todas as minhas acções,
são uma reacção à situação de imigrante.
Que é muita petulância de imigrante querer entrar para a
política nacional... É muito atrevimento. Isto dito mesmo por
cabo-verdianos.
Como é que os conhecidos e amigos reagiram a este envolvimento na política?
Os jovens
acham o máximo, que assim é que deve ser. Viram isso como um
direito.
Os adultos sentem-se mais retraídos.
Tivemos mais trabalho em informar e fazer com que os mais velhos
se recenseassem e fossem votar do que com os mais novos.
Mas mesmo os mais velhos alguma coisa entenderam está-se
a passar alguma coisa diferente, algo está a mudar.
Na verdade, os mais novos pensaram já nascemos aqui,
já estamos aqui há tanto tempo, porque não?
Esta participação dos imigrantes na vida política poderá abrir melhores perspectivas?
Se Portugal é um país
multicultural, deveríamos começar a encarar esta nova
realidade.
Vamos aceitar o nosso país, Portugal, como ele é. Vamos tentar
mudar as coisas. Vamos ensinar aos nossos filhos, aos nossos
netos a gostar dos que gostam de cachupa e dos que gostam
de cozido à portuguesa. Viver com aquilo que temos.
Porque se há-de querer excluir um povo que já cá está?
Portugal é um país maravilhoso, cheio de cores. Há pessoas que
sabem fazer imensas coisas diferentes. É esta riqueza, a
diversidade, que deve ser aproveitada. Os fantasmas nascem das
pessoas não falarem, não se conhecerem, não conviverem. E
desapareceriam se fossem respeitados os valores dos outros, se se
soubesse dialogar.
Quando eu era pequenina não havia bonecas negras. Agora já há.
Isso é um sinal de um universo que já começa a respeitar as
outras culturas. Negros sempre houve, só que não tinham direito
a um boneco assim parecido.
Em 1980 decidimos encomendar, no Centro Social 6 de Maio, bonecas
negras. Estivemos à espera quase seis meses. Estas nossas
primeiras bonecas tiveram que vir de Inglaterra.
Penso que foi em 89 que uns miúdos me perguntaram porque é que
no presépio o menino Jesus nunca era castanho. Eles até nem
disseram negro. E eu, no ano seguinte, resolvi pintar o menino
Jesus de negro.
Agora não. Agora no jardim infantil temos tudo. Índios, negros,
brancos, tudo.
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O que está em causa é a classe social
Mais do que da situação dos imigrantes cabo-verdianos, temos estado a falar da realidade dos bairros degradados. E aqui, nas Fontaínhas, que diferenças há, ou não, entre nacionais e imigrantes?
Eu vim para cá com os meus pais. Pertenço a Portugal. O que procuro aqui é o que qualquer nacional procura meios para viver com dignidade.
Só que o cabo-verdiano - o imigrante, seja ele qual for não encontra nem possibilidades, nem apoios.
O filho do imigrante cabo-verdiano não tem formação adequada, porque muitas vezes nem fez a escolaridade obrigatória, porque ninguém se preocupou com ele. E hoje em dia, se não se tiver o 9º ano, não se pode fazer um curso de formação profissional.
Isto tudo conta.
Não tem trabalho e quando o tem é mal remunerado. Tem que ir fazer aquilo que sobra.
Mas não se trata só de imigrantes, mas sim de todos os que vivem nestes bairros degradados da Amadora. Ou seja, o que está em causa é a classe social baixa, a consciência de pobre, seja ele imigrante ou não.
Tudo isto tem a ver com pobreza.
(Entrevista conduzida por Lígia Calapez)
Cabo-verdianos em Portugal
Em 31 de Dezembro de 1997, residiam em Portugal 175.263 estrangeiros com situação regularizada junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Destes, cerca de dois terços são originários de países de língua portuguesa, sendo o maior grupo de origem cabo-verdiana quase 40.000 com situação regularizada. Em situação ilegal são, naturalmente, muitos mais.
Uma população muito concentrada no conjunto dos distritos do litoral, mercê da atracção do eixo Lisboa/Setúbal 97% segundo um estudo de 1992 do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento. De salientar que nos três concelhos de Lisboa, Amadora e Oeiras, que detêm 11% da população nacional total, concentram-se 51% dos cabo-verdianos residentes no nosso país.
Uma população que se debate com um sem número de problemas e de que aqui nos limitamos a referir os que são mais sentidos, de acordo com o mesmo estudo.
Problemas | % |
Emprego |
27,9 |
Habitação |
22,7 |
Racismo / marginalização |
26,7 |
Dificuldades económicas |
15,8 |
Desadaptação à sociedade portuguesa |
5,9 |
Outros |
0,9 |
«Avante!» Nº 1309 -
30.Dezembro.1998