anos
da Declaração Universal
dos Direitos do Homem

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Meio século
de ilusões
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Aos 75 anos e com uma pensão de miséria, o senhor Zé Manel vive os tempos mais desafogados da sua existência. Não se trata de uma figura de ficção: existe mesmo, numa pequena aldeia do Alto Alentejo, onde passa os dias da suada reforma amanhando a horta no exíguo quintal, fazendo armadilhas para os pássaros dos petiscos com os amigos, aquecendo os ossos em cada réstea de sol.

Aos 25 anos, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o senhor Zé Manel não teve conhecimento do evento. Trabalhava de sol a sol a troco de quase nada - «em 30 dias comi 60 açordas»; «enquanto trabalhei nunca tive dinheiro para comprar umas botas» -; trabalhava no que calhava e quando calhava haver trabalho. Do quintal onde mata saudades da terra que nunca teve avista a estrada que ajudou a rasgar - «chamávamos-lhe a estrada da fome, tanto que ali trabalhámos a seco» -, ignorando fazer parte da legião de mais de um milhão de portugueses que vive hoje com menos de 30 contos mensais.

Enfim com tempo para o lazer, o senhor Zé Manel, ouvinte atento das notícias do mundo - «grande invenção esta, a da televisão» -, acompanhou os discursos solenes dos grandes do planeta a celebrar os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, sem sonhar sequer que a sua vida de trabalho não chegaria para pagar a factura dos trajes a rigor e que uma única gravata daquelas a ornar os brancos colarinhos pagaria todas as botas que nunca pôde comprar.

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(...) «a população mundial manifesta de diversas maneiras a necessidade urgente de resolver graves problemas sociais, especialmente a pobreza, o desemprego e a exclusão social que afectam todos os países. A nossa tarefa consiste em atacar, quer as causas subjacentes e estruturais, quer as suas terríveis consequências, a fim de reduzir a incerteza e a insegurança na vida das pessoas.»

Belas palavras, estas, da Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Social, em que os chefes de Estado e de Governo reunidos em Copenhaga em 1995 assumiram o compromisso «inquebrantável» de dar a «máxima prioridade» ao desenvolvimento social e bem-estar da humanidade.
Palavras de quem sabe que a defesa e promoção dos direitos humanos passa por questões tão importantes como o direito ao trabalho, o direito à protecção no despedimento, o direito à protecção contra a pobreza e a exclusão social, o direito à habitação condigna, alguns dos 12 direitos consagrados na Carta Social Europeia Revista. A primeira revisão da Carta, cuja versão original data de 1961, foi aprovada em 1983; a segunda data de 1996. O Governo Português ainda não a ratificou.

Palavras. Só palavras? Ou apenas expressão das contradições do mundo em que vivemos? A resposta não é linear.

É um facto que em 50 anos muita coisa mudou e algumas dessas mudanças foram positivas. Não é irrelevante o reconhecimento, em muitos países, dos direitos políticos. Por eles se bateram gerações de homens e mulheres, com particular destaque para os comunistas, conquistando quantas vezes com o sacrifício da vida o que hoje nos parece elementar: liberdade de expressão, de reunião e de circulação, direito de voto, direito de opinião... São conquistas da humanidade que importa defender, preservar e garantir a todos.

O problema é que, sendo fundamentais, tais direitos não são suficientes. O pleno exercício desses direitos implica o respeito por todos os outros - são trinta os artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem -, pois como alguém afirmou um dia «todos os direitos do homem são iguais e indivisíveis, não há escolha escolha a fazer entre eles; desde que um só é suprimido, suprimem-se todos os outros; e a democracia não admite ser parcelar».
A humanidade registou no último meio século avanços verdadeiramente admiráveis no domínio da ciência e da técnica; avanços que, legitimamente, permitiam esperar que a vida se tornasse melhor para todos. Não foi isso que sucedeu, não é essa a realidade em que vivemos. Em vez de diminuir, agravou-se o fosso entre os países ricos e os países pobres: «em 1960, 20 por cento da população mais rica detinha 69 por cento da riqueza do mundo, enquanto 20 por cento da mais pobre detinha apenas 2,5 por cento; em 1994, os mesmos 20 por cento da população mais rica aumentava a sua riqueza para 85 por cento e igual percentagem da mais pobre diminuía para 1,4 por cento».

A realidade brutal dos nossos dias é expressa por números que são o mais violento testemunho da desumanidade do sistema em que vivemos: «... os três indivíduos mais ricos do mundo possuem uma fortuna superior ao produto interno bruto do conjunto dos 48 países mais pobres do planeta»; «... metade da população mundial, isto é, três biliões de pessoas, vivem com menos de 300$00 por dia»; «... ainda hoje, morrem de fome todos os anos 30 milhões de pessoas e 800 milhões são vítimas de subnutrição crónica»; «mais de mil milhões de habitantes do mundo vivem em situação de pobreza extrema e a maioria passa fome todos os dias»; «mais de 129 milhões de pessoas em todo o mundo estão oficialmente desempregadas e muitas mais vivem numa situação de subemprego»; «mais homens do que mulheres vivem em pobreza absoluta e o desequilíbrio continua a aumentar».

Afinal, de que falamos quando falamos de direitos humanos?


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998