anos
da Declaração Universal
dos Direitos do Homem

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União Europeia:
muitas culpas no cartório
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«Os Direitos do Homem constituem o fundamento da existência e da coexistência humanas. Universais, indivíseis e interdependentes, são aquilo que define a nossa humanidade».

As palavras atrás citadas são do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e servem de referência à exposição de motivos do relatório anual sobre o respeito pelos Direitos do Homem na União Europeia, recentemente apresentado pela Comissão das Liberdades Públicas e dos Assuntos Internos do Parlamento Europeu.

O relatório, adoptado na Comissão por 17 votos a favor, quatro votos contra e sete abstenções, não agradou à direita europeia. Apesar de algumas das suas propostas de emenda terem sido adoptadas, introduzindo inclusivé certas contradições nas linhas gerais do relatório, as forças de direita representadas no PE não subscreveram o documento. As humaníssimas preocupações que não se cansam de afirmar parecem incompatíveis com uma certa dose de realismo.
O documento constata o óbvio: se por um lado os Direitos do Homem têm vindo a adquirir importância política, sendo praticamente omnipresentes nas Constituições de todos os países, nas Resoluções internacionais, nos Tratados, nas Convenções e nos discursos políticos, nem por isso a humanidade se encontra hoje mais perto da concretização dos ideais de 1948.
«Basta ler os relatórios anuais da Amnistia Internacional - diz o relatório da Comissão - para se tomar conhecimento dos sofrimentos que afectam o nosso Mundo. O relatório relativo ao ano de 1997, que acaba de ser divulgado e descreve a situação em 141 países, constitui uma sucessão de torturas, violências, violações e assassínios, de violações do Estado de direito e de privação de liberdades. É absolutamente lamentável que onze dos quinze Estados-membros da União sejam citados neste relatório (a Finlândia, a Irlanda, o Luxemburgo e os Países Baixos não são mencionados). Com efeito, a União Europeia não pode condenar as violações dos Direitos do Homem em todo o Mundo e fechar os olhos às falhas que se podem constatar no seu território.»
A União Europeia, recorda-se, não se limita a afirmar a sua existência como assente «nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos Direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais» - nº 1 do artigo 6º do Tratado de Amesterdão -, mas estabelece a observância desses direitos como uma das condições tanto para a sua política de cooperação económica com os países terceiros, como da sua política externa e de segurança comum. Daqui decorre que «da mesma forma que poderiam ser suspensos os direitos de um Estado-membro que violasse de forma grave e sistemática as obrigações que lhe estão cometidas em matéria de direitos humanos, também um Estado ligado por um acordo à Comunidade (Acordo de Lomé, acordo de associação, etc.) pode ser sancionado.»

Pode ser, mas não é.

Telhados de vidro

A partir do relatório a que nos vimos reportando - e que está longe de ser exaustivo - é possível elencar uma série de situações que constituem graves atentados ao respeito pelos direitos humanos, sejam eles civis e políticos, económicos, sociais ou culturais.
A pena de morte não existe em nenhum Estado da UE, o que é motivo de congratulação. No entanto, quer a França quer o Reino Unido ainda não assinaram o Segundo Protocolo referente ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que visa abolir a pena de morte. A Bélgica, por seu lado, ainda não ratificou este documento. Por adoptar, em diversos Estados-membros, continuam as disposições que impeçam a extradição, para países terceiros, de pessoas passíveis de sofrerem a aplicação da pena capital nesses mesmos países.
Apesar de ser consensual que à violação dos Direitos do Homem, seja qual for a gravidade dos actos cometidos, não se deve responder com outras violações desses mesmos direitos, a verdade é que o combate à violência e criminalidade que grassa nas sociedades europeias ignora cada vez mais esse preceito, como se tem verificado em países como a Espanha, Reino Unido, França e Portugal, para citar apenas alguns exemplos.
No respeitante ao articulado que estipula que «qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial», o desrespeito, por tão generalizado, leva a que se esqueça que se trata de um direito. O panorama a nível nacional dos Quinze é deplorável - veja-se só o caso de Portugal, em que os processos chegam a demorar mais de uma década -, e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem revela-se incapaz de fazer inverter a situação. Mais de um terço dos acórdãos proferidos por aquele Tribunal em 1997 reportaram-se a casos em que o direito em causa foi violado, mas isso não impede que a morosidade dos processos e a violação dos direitos da defesa se tenham tornado moeda corrente na UE.
Ainda no domínio dos direitos civis e políticos, de referir o facto de o direito ao respeito pela vida privada ter sido posto em causa pelo menos na Finlândia e no Reino Unidos, o que deu origem a casos julgados e condenados pelo Tribunal Europeu de Estrasburgo; o mesmo sucedeu quanto ao direito de liberdade de opinião e de expressão, «cada vez mais desprezado no Mundo» segundo o relatório da Comissão das Liberdades do PE, havendo a registar em 1997 a condenação da Áustria e da Grécia pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Quantos casos destes, a começar por Portugal, ficaram por denunciar e julgar, pelo simples facto de que os lesados ignoram sequer a possibilidade de recorrer às instâncias comunitárias?
E não se pense que, em matéria de direitos civis, as coisas se ficam por aqui. Na vizinha Grécia, e apesar de diversas condenações no Tribunal Europeu, continua em vigor a legislação de 1993 que obriga os cidadãos a indicar a sua confissão religiosa em todos os cartões de identidade.


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998