Um relatório explosivo
sobre a amplitude da violação
dos Direitos Humanos nos EUA

Por Miguel Urbano Rodrigues


Philip Agee o celebérrimo ex-agente da CIA, acaba de fazer em Havana declarações que tiveram imediata e enorme repercussão na América Latina. O seu mérito foi ter chamado a atenção para um Relatório da Amnistia Internacional sobre a situação dos direitos humanos nos EUA. Não obstante haver sido divulgado em Outubro p.p., esse importante documento não mereceu até agora atenção mínima dos grandes media internacionais. Isso apesar de apresentar um panorama assustador.

Poucos dos participantes na Conferência de Havana, promovida pelo Movimento Cubano pela Paz e Soberania dos Povos, esperavam grandes revelações quando Philip Agee principiou a falar. Daí a surpresa.
A sua comunicação ao plenário foi uma autêntica bomba política.

Agee começou por recordar que todos estamos fartos de escutar o discurso sobre a promoção dos direitos humanos como suposto pilar da política externa dos EUA. O complemento natural dessa lengalenga é a acusação a muitos Estados do Terceiro Mundo de não respeitarem os direitos humanos. Alguns desses países figuram na lista negra de inimigos elaborada pelo governo de Washington. Um exemplo: os EUA insistem todos os anos em empurrar Cuba para o banco dos réus da ONU. Não há entretanto notícia de uma só acusação norte-americana que vise Israel, a Arábia Saudita, a Turquia ou a Indonésia, para citar apenas quatro Estados que, esses sim, violam sistematicamente os direitos humanos.

Philip Agee informou que tão logo o Relatório da Amnistia Internacional sobre a situação dos direitos humanos nos EUA foi publicado, as organizações de ultra direita norte-americanos protestaram e o senador Jesse Helms manifestou a sua indignação. Entretanto, os grandes jornais e as cadeias de televisão ignoraram o acontecimento, com raríssimas excepções.
O mérito do Relatório consiste sobretudo em ter enfeixado nas suas 155 páginas informações provindas de diferentes fontes norte-americanas (depoimentos de vítimas, testemunhas, funcionários da Administração, e até de congressistas).
O trabalho foi dividido em seis partes, por temas: brutalidades policiais; tortura e violência nos presídios; maus tratos infligidos a candidatos a asilo político; questões relacionadas com a pena de morte; exportação de armas e instrumentos de tortura; e resistência dos EUA a ratificarem Convenções Internacionais relacionadas com os Direitos Humanos.

Brutalidades policiais

No tocante a brutalidades policiais, Agee - que leu com frequência trechos do Relatório - evocou casos reveladores do elevado nível de corrupção das polícias nos EUA. Para encobrir crimes de torcionários e assassinos da Polícia é comum, por exemplo, a falsificação de relatórios com a cumplicidade da Secretaria de Justiça dos EUA. O envolvimento de chefias, em todos os escalões, a fim de proteger oficiais e agentes que cometeram crimes, tornou-se prática rotineira nos Departamentos de Polícia de Nova York, iladelfia, Chicago, Los Angeles, Nova Orleans e Pittsburgh. Glorificados pela televisão, os Blues, heróis anónimos a serviço da colectividade, constituem a excepção num universo policial cada dia mais corrompido.
A cumplicidade é extensiva ao FBI. Quanto à chamada Patrulha da Fronteira, enaltecida pelo cinema, a percentagem de criminosos nesse corpo policial é elevadíssima. As torturas infligidas aos imigrantres ilegais assumem facetas sádicas. O Relatório menciona 94 mortes em consequência da tortura e de outros tipos de violência e 60 mortes resultantes da utilização de armas químicas, como o pepper spray. O governo federal fecha os olhos a esses crimes.
Agee deu particular atenção às violações de direitos humanos cometidas nos presídios (cuja privatização está a ser um negócio rendoso).
O Relatório esclarece, aliás, que o total de pessoas encarceradas nos EUA deve exceder hoje dois milhões de pessoas, uma das mais elevadas percentagens do mundo (mais de metade são negros, apesar de os afro-americanos representarem apenas 12% da população do país).
A tortura faz parte da rotina desse mundo sórdido. O uso pelos guardas de pistolas paralisantes tornou-se prática comum não obstante o choque de 50.000 volts provocar sequelas graves.
As punições infligidas em numerosos estabelecimentos prisionais são bárbaras. Entre elas, além de longas permanências no solitário, figura a utilização de correntes nas mãos e nos pés. Algumas mulheres foram agrilhoadas em adiantado estado de gravidez, e nem durante o parto lhes retiraram as cadeias. Segundo o Relatório, é muito elevada a percentagem de mulheres violadas e submetidas a sevícias sexuais; quando se queixam são geralmente punidas.
Em muitos presídios existe uma versão aperfeiçoada da cadeira do dragão brasileira; o cinturão electrico é tambem de uso frequente; e os choques são de alta voltagem. Esses métodos são inclusivamente utilizados pelo Serviço de Vigilância Judicial (US Marshall's Office) e em centenas de Departamentos de Polícia de diferentes Estados.
Em certos estabelecimentos os presos não podem usar relógio nem receber jornais ou livros.

Pena de morte e tortura

Agee leu passagens do Relatório relacionadas com a violência exercida sobre pessoas que pedem asilo, sobretudo latino-americanos e africanos. Muitos são detidos logo à chegada e encarcerados; assim permanecem durante meses, tratados como delinquentes comuns. Presentemente encontram-se nessas condições, esquecidos, uns l5 000 estrangeiros, sem culpa formada.
No tocante à pena de morte o Relatório descreve pormenorizadamente casos em que os condenados tiveram uma agonia prolongada porque a cadeira electrica ou a injecção letal não funcionaram normalmente. Alguns sofreram horrores durante mais de uma hora. Um deles, Tommie Smith, de Indiana, executado em l996, foi picado 35 vezes com a seringa fatal, antes de o carrasco encontrar uma veia onde, finalmente, conseguiu introduzir o veneno.
O capítulo sobre a exportação de armamentos e material de tortura é elucidativo, noutra área, da atitude dos EUA perrante os direitos humanos dos povos do Terceiro Mundo. Somente entre 89 e 96, os EUA obtiveram 117 mil milhões de dólares (mais do que o PIB português) com a venda de armas convencionais e químicas e instrumentos de tortura, para 57 países, muitos dos quais submetidos a regimes ditatoriais.
Agee pôs igualmente ênfase na contradição entre o discurso farisaico sobre os direitos humanos e a resistência dos EUA a ratificarem convenções internacionais que os garantem e protegem. Apresentou exemplos. O Relatório lembra que os EUA são hoje um dos dois únicos signatários da Convenção sobre os Direitos da Criança (o outro é a Somália) que ainda não a ratificaram. Quanto à Convenção sobre a eliminação de Discriminações Atentatórias dos Direitos da Mulher, Washington também não a ratificou embora a tenhar aprovado. A relativa ao Genocídio foi ratificada quatro décadas após a adesão. E a que condena o racismo esperou 28 anos. A referente ao Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais aguarda ratificação...
Sem direitos humanos não pode obviamente haver paz, mas a paz sem respeito pelos direitos humanos não merece esse nome.
Philip Agee recordou uma evidência ao afirmar que os EUA hoje são, para mal da humanidade, «um país em guerra consigo mesmo e com grande parte do resto do mundo»

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Não é fácil compreender os motivos que levaram a Aministia Internacional -organização que durante muitos anos manteve uma relação especial com os EUA - a elaborar este Relatório explosivo e a torná-lo público.
Coloquei a questão durante o debate e Philip Agee, considerando-a pertinente, respondeu não «haver ainda resposta satisfatória para ela..». Mas seja qual for a motivação da iniciativa não poderá reduzir o significado das revelações feitas.
O Relatório da Amnistia Internacional projecta no mundo uma imagem medonha dos EUA. A violação dos direitos humanos tornou-se na grande República uma realidade assustadora que os detentores do poder, cúmplices, simulam ignorar.

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PHILIP AGEE é talvez, entre todos os ex-agentes da CIA que romperam publicamente com a Organização, aquele cujo nome ganhou maior notoriedade.
Agee não se limitou a denunciar pelo mundo fora as conspirações e crimes em que esteve envolvida a famosa Agência Central de Inteligência dos EUA. Ao mudar de campo assumiu como suas as lutas libertadoras dos povos agredidos pelo imperialismo norte-americano.
Hoje vive a maior parte do ano em Hamburgo, na Alemanha, e sabe que a sua vida está permanentemente ameaçada.
Em Havana tive a oportunidade, em breve troca de impressões, de o ouvir aprofundar as razões que o levaram à ruptura com a Casa de Langley. Foi na América Latina que o seu próprio trabalho o fez tomar consciência de uma realidade que o angustiou. Compreendeu que o imperialismo americano - e a CIA como seu instrumento peculiar de acção - dava continuidade, por outros meios, e em escala planetária, a um sistema de vilolência e opressão que tivera o seu início com a Conquista, após a chegada de Colombo. À ruptura seguiu-se uma opção progressista que o conduziu à solidariedade com causas como a de Cuba e de outros povos que se batem por uma independência real.


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998