Igualdade, paridade, quotas.... (I)

Por Odete Santos


"Há palavras de uma tal densidade que não suportam ser menorizadas pela vizinhança de um epíteto qualquer. A palavra igualdade é uma delas. Não há igualdade adaptada, não há igualdade global. A igualdade ou existe ou não existe."

Excerto de uma intervenção de Aimé Césaire, deputado do Partido Comunista Francês, produzida em 1982 na Assembleia Nacional Francesa a propósito do Estatuto dos Departamentos Ultramarinos.

O texto em epígrafe, não diz respeito a nenhum debate relativo à partilha do poder político entre mulheres e homens. No entanto, as considerações que o Deputado francês, a respeito de outra matéria, teceu sobre o conceito de igualdade, podem servir de ponto de partida para uma reflexão acerca da paridade, colocada na ordem do dia das reivindicações de alguns movimentos feministas.
A chamada Democracia Paritária ( a que se reivindica de uma percentagem de representantes femininos nos órgãos de poder pelo menos igual à dos representantes do sexo masculino) será sinónimo, ou será, até, instrumento da igualdade real?
Um sistema que atribua às mulheres uma determinada percentagem nas listas eleitorais, será instrumento da igualdade de oportunidades?

O paritarismo ou o sistema de quotas, podem considerar-se acções positivas vocacionadas para a construção da igualdade?
O princípio da igualdade não sairá menorizado , tendo como aposto ou continuado, a paridade, ou a percentualização dos representantes de cada um dos sexos?

A questão das quotas femininas nas listas eleitorais, tem feito correr rios de tinta. Apaixonadamente, mulheres, mas também homens, situam-se nos dois campos opostos, com argumentos interessantes de um e outro lado.
No forum promovido pelo jornal espanhol El País travou-se um debate vivo entre os que estão a favor e contra as quotas.

Uma mulher Norte Americana, Narges Farahi, deixou o seguinte testemunho:

«A falta das mulheres nos órgãos de decisão política é um reflexo das atitudes machistas que ainda há na sociedade... Como podemos combater estas mentalidades com raízes tão profundas para dar às mulheres a oportunidade de participar nesta área dominada pelos homens? Claro que não há uma forma simples de mudar a direcção da história, mas a implementação de quotas pode ajudar as mulheres a obter a igualdade...»

Mas em testemunho vivíssimo contrapunha a espanhola Teresa de Castro de Granada:

«Com o tema das quotas passa-se o mesmo que com tantas outras coisas que acontecem neste país. Se se cumprisse a lei todo este grande debate não teria razão de ser. Eu como mulher quero as mesmas oportunidades que os homens. Nem mais nem menos. E para isso só faz falta uma coisa, bem simples, tão simples que roça o vulgar : Que se cumpra a lei. Por que julgam os senhores que as mulheres têm tantos problemas? Simplesmente porque há muita gente que não cumpre a lei, e porque essa gente que não cumpre a lei não é punida. Eu proponho que se cumpra a lei com rigor, a ver quem se atreveria então a discriminar uma mulher porque engravidou ou quem se atreveria a pagar menos a uma mulher que ocupa o mesmo lugar que um homem!
Sinceramente prefiro a lei às quotas, mas neste país ninguém está interessado em que a lei se cumpra, e preferem contentar-nos com as migalhas dos seus banquetes. Eu, senhores, quero sentar-me à mesa e fartar-me de comer, porque dentes tenho eu e muito sãos.»

Num momento em que o Governo do 1º Ministro António Guterres (o 1º Ministro que esteve contra as mulheres a respeito da despenalização do aborto) se prepara para muito falar de igualdade a propósito das quotas para mulheres nas listas eleitorais , há que perguntar, parafraseando Teresa de Castro:
Por que julgam os senhores que as mulheres têm tantos problemas?

As reivindicações da paridade

Curiosamente, foi na década de 80, a década de uma declarada ofensiva contra os direitos laborais, a década em que, de novo, e por causa da crise, se voltou a apregoar as virtudes do regresso das mulheres ao lar (em nome do direito à diferença) foi nessa década que vozes dos movimentos feministas começaram a reclamar a Paridade entre Mulheres e Homens nos órgãos de poder. Um número igual de mulheres e homens. Vozes que centraram o combate às desigualdades na construção de uma Democracia em que a palavra Igualdade da Trilogia "Liberdade, igualdade,fraternidade" seria substituída por Paridade. "Liberdade, Paridade, Fraternidade".
A proposta partia de reivindicações já constantes da Resolução da Conferência do México sobre a situação das Mulheres no Mundo. A Conferência referia a necessidade da partilha do poder político entre as mulheres e homens como condição para a paz e o desenvolvimento.
A proposta para uma Democracia Paritária era, à primeira vista, aliciante. Porque, partindo de um dado real - as mulheres são vítimas de discriminações apenas porque são mulheres - procurava impor ao sexo masculino uma representação igualitária, que, segundo as paritaristas, afirmaria o direito à cidadania plena, por parte das mulheres.

Relegando para segundo plano a luta contra as causas da discriminação do sexo feminino, as defensoras da Paridade puderam rever-se nas Conclusões da Cimeira Europeia realizada em 1992 em Atenas, que claramente defendia a Paridade, inovando em matéria Comunitária:
«Porque a igualdade formal e informal entre homens e mulheres é um direito fundamental do ser humano... Porque as mulheres representam mais de metade da população, a democracia impõe a paridade na representação e na administração das Nações.... Nós reivindicamos a igualdade de participação das mulheres e homens nas tomadas de decisão públicas e políticas».
O acento tónico foi aqui claramente colocado numa igualdade formal, já que, a paridade nos órgãos de decisão não significa que se verifique a igualdade real na sociedade entre mulheres e homens.

Da Carta de Roma (18 de Maio de 1996) - resultado da reunião das mulheres Ministros dos Estados Membros da União Europeia - encontram-se também ausentes as preocupações com as causas reais da discriminação do sexo feminino. As Senhoras Ministras preocuparam-se muito com a paridade e nada com o desemprego feminino. Nada com as discriminações salariais das mulheres. Nada com o facto de as mulheres serem as primeiras vítimas da flexibilização, da desregulamentação do trabalho. Nada com a feminização da pobreza.

Se é certo que a fraca representação das mulheres nos órgãos de decisão é sintoma de um déficit democrático, não será um sintoma bem mais grave, o que consta do último Retrato Social da Europa publicado pelo Eurostat?
Segundo os dados estatísticos, na União Europeia, das pessoas trabalhando em tempo parcial, 32% eram mulheres e 5% homens! E trabalho a tempo parcial, tal como é imposto, significa trabalho sem direitos. Trabalho empobrecido!
Em 1996, na União Europeia, dos trabalhadores com contrato de trabalho indeterminado, 85% eram homens e apenas 59% mulheres! O que torna as mulheres as principais vítimas da precarização do trabalho. E precarização implica diminuição de direitos, despedimentos, desemprego!
Na União Europeia, segundo as suas próprias estatísticas, as mulheres ganham menos do que os homens em todos os empregos.
Diz-nos o Eurostat : «Mesmo tendo em conta as diferenças estruturais, os ganhos das mulheres são pelo menos 10% inferiores aos dos homens em cada Estado Membro».
Não será este um déficit democrático que não tem o seu remédio nas reivindicações de Paridade?

A verdade, no entanto, é que os retrocessos nas lutas sociais deixaram uma ampla margem de manobra para que a luta das mulheres corresse o risco de se transformar numa guerra dos sexos. Como se o chamado Poder masculino - o que explora mulheres e homens - não contasse também com o braço executor de algumas mulheres.

(Continua)


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998