Por um Sector Público forte e dinâmico
Combater o «mito» liberal


Um documento bastante exaustivo sobre a situação do processo de privatizações e as suas consequências - que serviu de base aos trabalhos do Encontro de Quadros sobre o Sector Público, realizado no dia 12 de Dezembro - encontra-se em discussão nas organizações até ao dia 11 de Janeiro.
Concluindo pela necessidade da exigência de «um Sector Público forte e dinâmico para a democracia e o desenvolvimento», o documento (de que se faz um pequeno resumo) está aberto a propostas e sugestões de alteração por parte da organização, visando o seu melhoramento e aprofundamento.

Em cerca de 20 anos, a face do sector público foi radicalmente reduzida e encontra-se hoje sob clara ameaça de delapidação e descaracterização.
Entretanto, o prosseguimento, pelo PS, da política de entrega ao grande capital de sectores fundamentais e estratégicos ensaia novos e rudes golpes contra os trabalhadores, quer em regime de direito privado, quer da administração pública.
Com as nacionalizações e a Reforma Agrária, a Constituição de Abril colocou sob a responsabilidade do Estado todos os sectores estratégicos da economia - banca, seguros, energia, transportes e comunicações e as principais indústrias.
Os ataques a estas conquistas não se fizeram, contudo, esperar, designadamente através do seu esvaziamento e subversão, da criação de instrumentos jurídicas à margem da Constituição, da crescente sujeição dos interesses nacionais às directrizes do capital nacional e estrangeiro e da instrumentalização do sector público produtivo.
Iniciada em 1976 pelo PS, e aprofundada de forma sistemática a partir de 1985, esta ofensiva tem demonstrado correspondência clara com os interesses do grande capital e a concentração da riqueza, assente na delapidação do património colectivo e na intensificação da exploração.
Também a integração no Mercado Comum e a própria génese do processo de liberalização em curso incorporam a destruição e descaracterização deste património do Estado.
O processo de desnacionalizações tem denotado, porém, algumas características específicas, próprias do contexto histórico, das suas contradições e da intensa luta dos trabalhadores. Afirmando visar, numa primeira fase, «a necessária correcção e aprofundamento das conquistas de Abril», o discurso foi tornando-se mais «pragmático», para esconder a opção ideológica e de classe subjacentes. Mais tarde, apareceu a «necessidade» de modernizar e racionalizar a estrutura económica do país e «aproximar Portugal dos modelos europeus», ao mesmo tempo que se fomentou a ideia do pequeno subscritor e do «capitalismo popular» e apoiou a compra de acções pelos trabalhadores, numa tentativa de neutralizar a sua luta contra as privatizações. O que veio a revelar profundamente nefasto para a pequena poupança e agravar a exploração do trabalho.
Hoje aparecem ainda como justificação «os constrangimentos impostos por Bruxelas», o que, sendo parcialmente verdade, não esconde uma opção estrutural há muito tomada.

Legislação descaracteriza o sector

Foram, porém, as políticas e os instrumentos jurídicos criados para a liberalização das privatizações - entre outras, a Lei de Delimitação dos Sectores,em 1977, Lei Barreto, Lei das Indemnizações, novo Código de Investimentos Estrangeiros e Revisão Constitucional de 1982 e a autorização, em 1988, para a alienação pelo Estado de um máximo de 49 por cento do capital das empresas nacionalizadas - que entregaram sectores decisivos da economia nacional ao capital privado. O objectivo era adquirir mais valias financeiras e fomentar a especulação bolsista.
Em 1989, a segunda Revisão Constitucional destrói o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e, em 1990, a Lei Quadro das Privatizações cria as condições para a sua legitimação.
Em 1993, o Governo do PSD decide liberalizar sectores decisivos da competência da Administração Local - como a água e os resíduos sólidos urbanos - e, finalmente, em 1997, o PS e o PSD «escancaram» ao capital privado sectores como os Correios, a Defesa Nacional, o Transporte Feroviário e os Portos.
Mas as especificidades deste processo de destruição do SEE estão também patentes nas subavaliações das empresas, na injecção de milhões de contos para as tornar lucrativas, na atribuição de vultosos benefícios fiscais. Ao mesmo tempo, prepara-se a sua entrega através da fragmentação e divisão das empresas por unidades de negócio, da sua fusão, como no caso do sector das comunicações/telecomunicações, ou, ainda, da sua extinção, como aconteceu com a CTM e a CNN.
Outra característica, é a degradação da capacidade realizadora das entidades públicas e a adopção de critérios que privilegiam a gestão privada. O impedimento de as empresas públicas participarem em concursos e a reserva de mercado para os privados na área da protecção social e da saúde - caso dos meios auxiliares de diagnóstico - são paradigmas da lógica que determina o Governo PS.
A denominada Reforma Administrativa e do Estado não é, afinal, mais que a sua descaracterização, com o objectivo de reconstituição do poder dos grandes grupos económicos, através da submissão do social ao mercado e da imposição de mecanismos de redução de défices, da inflação e de despesas públicas e sociais.
Em dez anos de privatizações, o País não só perde empresas como se torna refém das estratégias e decisões de poderosas multinacionais.
Entretanto, o Estado, como o Governo já admitiu, perde vultuosas receitas fiscais e os lucros das empresas públicas são confiscados ao erário público e transferidos para os grupos económicos e financeiros. Só a EDP e a Portugal Telecom, em apenas quatro anos, deram em conjunto 470 milhões de contos de lucro e pagaram ao Estado mais de 350 milhões de contos de impostos. E o «mito liberal» prossegue à custa dos dinheiros públicos!

Lógica do lucro ameaça
o mundo do trabalho

A destruição do SEE anda a par de uma ofensiva brutal contra os direitos dos trabalhadores, traduzindo-se nomeadamente por despedimentos, diminuição ou retirada de direitos, intensificação da exploração, precarização e aumento dos ritmos de trabalho, discriminações salariais, flexibilidade e polivalência.
É assim que o resultado global desta política de cedência aos objectivos do patronato, dá conta da eliminação de mais de 75 mil postos de trabalho, com todas as graves consequências sociais que daí resultam.
Pela sua gravidade, destacam-se os projectos de generalização do trabalho a tempo parcial, a alteração do conceito de retribuição (em que o trabalho seria desvalorizado), a alteração da lei das férias, subordinando-as à assiduidade, a alteração do trabalho por turnos, o alargamento dos contratos a prazo, a alteração ao lay-off para penalizar a Segurança Social. Ao mesmo tempo, empurra-se o trabalhador para o contrato individual de trabalho, pondo em causa o direito à contratação colectiva.
A subordinação dos serviços públicos à lógica do lucro pretende, pois, transformar cidadãos com direitos em meros clientes cujos direitos estão condicionados pelos recursos de que disponham para pagar esses serviços, tendendo a mesma lógica do lucro máximo a privilegiar os sectores e áreas geográficas mais lucrativas e a secundarizar as outras e os próprios padrões de segurança.
Ao Estado caberia o papel de entidade reguladora, muito naturalmente condicionado pela pressão dos grupos económicos e financeiros.
Aliás, as consequências do processo privatizador para os serviços públicos e os interesses das populações e até para as PMEs - apesar de diferentes estados de adiantamento nos vários sectores - estão à vista, por exemplo, nos escandalosos preços anunciados para o comboio da zona concessionada do eixo Norte-Sul ou nos aumentos da electricidade, telecomunicações, água e resíduos sólidos urbanos.
O domínio crescente do capital financeiro em todo o sistema económico vai concentrando nas suas mãos o poder que retira às instituições políticas e reduzindo a capacidade de intervenção dos trabalhadores na vida das empresas.
Voltam as práticas de confusão entre os gupos económicos e financeiros e o Estado e aumenta a corrupção resultante dessa confusão. De um Estado que deve promover a coesão e justiça sociais passa-se, em cerca de 20 anos, a um Estado accionista, que insere progressivamente as empresas públicas na lógica privada e põe os meios de comunicação social - propriedade de grupos financeiros - ao serviço da «bondade» das privatizações.

Um SEE ao serviço do País

O Sector Empresarial do Estado detém, contudo, um importante papel e funções que exigem a necessidade da sua defesa, o combate à sua destruição e venda ao desbarato e uma gestão de acordo com os interesses nacionais e do povo, numa perspectiva de presente e futuro.
De facto, a política de direita praticada nas últimas décadas; a política de integração europeia e o impacto das orientações de liberalização e desregulamentação; a injusta ordem internacional; a distorção da divisão internacional do trabalho e o domínio do capital financeiro colocam interrogações e graves riscos a Portugal. É que, esbatidas as consequências desta política por uma conjuntura internacional favorável, começam a perfilar-se com nitidez o crescimento da corrupção, a adulteração de valores, a destruição do aparelho produtivo nacional e a vulnerabilidade do país face ao exterior.
Portugal não pode, pois, resignar-se às tendências dominantes, mas sim defender com determinação um projecto de desenvolvimento nacional. E, no quadro de uma economia mista, afirmar um sector público forte e dinâmico para a resolução dos problemas nacionais, da democracia e do desenvolvimento do País, para um novo rumo para Portugal, para uma política de esquerda.
Um Sector Público que tenha uma dimensão e peso decisivos nos sectores básicos e estratégicos - sector financeiro, em particular na banca; telecomunicações; comunicação social; transportes e vias de comunicação; energia; captação, tratamento e distribuição de água, tratamento de águas residuais e de resíduos sólidos urbanos e industriais; indústrias de defesa; siderurgia, química de base, cimento, celulose e papel, construção e reparação naval e exploração mineira - e nas áreas da agricultura, pecuária, alimentação e pescas.
Um Sector Público que mantenha os sectores tradicionais da Administração Pública e das funções do Estado nos vários planos, incluindo a Segurança Social, a Saúde e Ensino, e seja determinante nos sectores que tenham a ver com novos serviços, áreas em desenvolvimento, actividades de investigação científica e desenvolvimento tecnológico.
Isto implica, contudo, uma reestruturação, organização e articulação global e nos vários sectores, assim como uma gestão eficiente e dinâmica e direitos de informação, fiscalização e controlo dos trabalhadores e das populações. Implica uma orientação ao serviço do povo e do país.

Só um tal Sector Público poderá resistir com êxito a uma divisão internacional do trabalho desfavorável, impedir a transformação da economia nacional num mero instrumento de acumulação dos grandes interesses económicos e financeiros, defender e aprofundar a democracia portuguesa nas suas dimensões política, económica, social e cultural.


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998