A voracidade dos vendilhões
A ministra do Ambiente, Elisa Ferreira,
encontrou na questão dos resíduos industriais perigosos a sua
grande oportunidade no palco da política nacional. Já não era
sem tempo. Durante quase três anos, esta senhora labutou para
que dessem por ela num Executivo onde, ainda por cima, várias
mulheres se impunham por isto ou por aquilo e rapidamente
ascenderam, quando não ao estrelato, pelo menos ao proscénio do
espectáculo da comunicação.
Enquanto Maria de Belém embrulhava os problemas da Saúde num
imenso sorriso de faz-de-conta e simpatia ou Maria João
Rodrigues fazia do (des)Emprego um espectáculo de wrestling
em sessões contínuas, Elisa Ferreira boiava nas águas paradas
do politicamente correcto, ora pedindo desculpas «pelo tanto que
falta fazer em matéria ambiental», ora prometendo
«estratégias» como quem se penitencia, e sempre deixando no ar
um cheiro de indecisão que cedo perfumou sarcasmos
jornalísticos.
O tempo foi passando e até secretárias de Estado, como Ana
Benavente e Manuela Arcanjo, conquistaram protagonismos avessos
à ministra do Ambiente, a primeira movendo-se, convicta, no
pântano da Educação, a segunda afrontando com decisão a surda
arrogância do seu próprio ministro, Sousa Franco.
Mas eis que aflora no horizonte português um negócio que alguns
capitalistas mantinham sob discreta vigilância desde que
constou, na Europa dos ricos, ser «o negócio do século XXI»:
o tratamento dos resíduos produzidos em escala cada vez mais
perigosa. Os homens do dinheiro fizeram contas e, Midas como
sempre, até o lixo quiseram transformar em ouro. Tomada a
decisão, pelo poder económico, de pôr a render a
co-incineração dos resíduos tóxicos e perigosos, o poder
político fez o que lhe competia: pôs a máquina em movimento.
Foi aí que a questão do Ambiente entrou no quotidiano dos
portugueses com a urgência de um S.O.S. De repente, o coração
do Governo deixou de ter baques educacionais e passou a ter
impactes ambientais. A defesa dos oceanos e dos patrimónios
naturais, as preocupações com o ozono e os resíduos perigosos,
a atenção aos lençóis friáticos e à contaminação dos
solos, os projectos para a despoluição dos rios e do
ordenamento do território passaram a viajar transversalmente
pelos discursos governamentais, sempre afinados pelo verbo
infatigável e escolasticamente esculpido do primeiro-ministro.
Como era de esperar na prática do Governo, a generalidade destas
preocupações não passaram do plano teórico e, do foguetório
de trabalho a haver em matéria ambiental, nada teve expressão
no terreno. O país, apesar de agora lavado por uma enxurrada de
oratória, continuou sossegadamente a ser contaminado por uma
miríade de impunidades.
Todavia (há sempre uma fatídica adversativa no jogo
político...), algo emergiu, novo e pertinaz, neste mar de
vacuidades: a preocupação com os resíduos tóxicos e
perigosos. E tão funda era essa «preocupação», que o
Executivo de António Guterres fez o inesperado: agiu na calada
dos gabinetes e forjou um plano integrado que desse corpo, não
à preocupação estratégica com os resíduos tóxicos e
perigosos, mas ao negócio concreto e privado da
co-incineração. Estava explicada a febre ambientalista que
acometera o poder político em Portugal.
Foi assim que Elisa Ferreira viu cair-lhe no regaço a
distribuição de um papel de relevo no teatro do poder e agarrou
a oportunidade com tal volúpia, que a ministra indecisa de
outrora se metamorfoseou numa executiva implacável. Fica na
história das misérias deste Governo algumas afirmações
brutais desta ministra, como a de que «o Barreiro é um local
adequado para a estação de tratamento de resíduos perigosos
porque a sua população já está habituada à poluição».
Pairando, majestática, sobre os acontecimentos, a ministra do
Ambiente prestou-se à coordenação duma das mais chocantes
burlas políticas deste Executivo PS: a encenação de uma
pretensa auscultação pública às populações atingidas por um
projecto de co-incineração que estava decidido à partida.
Fica, igualmente, para a história das misérias deste Governo o
seu patrocínio do grotesco advocatório do projecto perante
populações maciçamente discordantes, protagonizado pelos
agentes dos próprios grupos monopolistas apostados no negócio.
Finalmente caiu o pano sobre o entremez, com Elisa Ferreira
encenando uma decisão há muito tomada. Sob a mesma bulldozer
do autoritarismo «dialogante» ficaram soterrados os pareceres,
advertências, alternativas e pedidos de mais estudo que choveram
de todo o lado, irmanados na sepultura com a própria retórica
governamental.
De pé, e garantida pelo Governo PS, só ficou a voracidade dos
vendilhões. Henrique Custódio