Seis meses depois


Sem cuidar de saber se isso será visto como atenuante ou como agravante, a verdade é que somos os primeiros a ter consciência que o assunto que se segue será, no senso comum, muito pouco adequado à quadra que vivemos.
Mas o calendário tem muita força e é ele que nos lembra que, na passada segunda-feira, dia 28, se completaram seis meses sobre o referendo à despenalização do aborto que, por entre demissionismos vários, terrorismos diversos, egoísmos variados e o peso decisivo dos votos das regiões autónomas, se saldou pela vitória tangencial do «não».

Talvez possa haver quem pense que assuntos que evocam derrotas são definitivamente para esquecer.
Mas nós, de facto, há injustiças que não queremos esquecer. E, por isso, queremos lembrar que, nestes seis meses, a única coisa que a vitória do «não» assegurou foi a imposição pelas leis do Estado da continuação do recurso ao aborto clandestino com o seu silencioso mas desumano cortejo de sofrimentos, angústias e dramas, numa imperdoável ofensa à dignidade das mulheres portuguesas que, só por si, chega para arrasar a cantilena que tantos entoam sobre a suposta modernidade da nossa sociedade à beira do terceiro milénio.

Nestes seis meses, tendo continuado o recurso ao aborto que tantas santas e boas almas em Junho esconjuraram como um nefando «crime contra a vida», uma terrível «pena de morte» e uma horrenda «matança de bebés», não se viu entretanto dessas mesmas bandas um miligrama da indignação, um milésimo do sobressalto moral, um cisco dos pungentes gritos de alma que antes dirigiram contra uma simples lei de despenalização do aborto.
Uma lei - repita-se ainda e sempre - que, por si, não mataria nada nem ninguém, mas traria segurança médica, amparo e solidariedade a quem, como hoje o continua a fazer mas em indignas condições, optasse responsavelmente por uma decisão de interrupção voluntária da gravidez.

Dito isto, podia chegar o momento de evocar nomes de personalidades que fizeram activa campanha pelo «não», de citar as suas inflamadas declarações de há seis meses e de lembrar o que entretanto continuou tragicamente a acontecer, só para se tirar a conclusão óbvia de que todo o seu combate, como na altura dissemos, não era tanto um território de convicções mas sobretudo um desejo da tranquilidade propiciada pelo que é silencioso e escondido, não era afinal contra o aborto mas apenas contra a nova lei de despenalização, não era afinal pela vida mas apenas pela cínica manutenção do aborto clandestino.
Evitemos, porém, essa legitima tentação de ajuste de contas «ad hominem», assim criando a inovadora figura da «generosidade dos vencidos».

Concluamos apenas que, seis meses passados sobre o referendo à despenalização do aborto, reina pois a paz nas ruas e a ordem nas consciências.
E, assim sendo, e pedindo desculpa por qualquer coisinha, limitamo-nos a convidar todas as ilustres personalidades civis e religiosas que, há seis meses, se bateram pelo «não» à despenalização do aborto a fazerem o favor de voltarem descansadamente para os sonhos (de farinha, ovos e açúcar), a todos desejando, não tarda muito, uma alegre passagem para mais um novo ano de aborto clandestino em Portugal. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998