Uma escola na avalanche


Pela mão, ou pelos olhos, do jornalista Jacinto Godinho mais da equipa que o acompanhou, conhecemos a Escola Básica 2/3 do Monte de Caparica. Pelo menos para mim, e não decerto apenas para mim, foi um susto. Ouve-se falar do clima de indisciplina que hoje se vive nas\ escolas, do mundo perigoso que é hoje grande parte do universo escolar, e fica-se inquieto. Mas dificilmente se imaginaria que pudesse ser assim. Para quem está longe daquela realidade, mesmo para a maioria dos que têm filhos em idade escolar, a palavra "inacreditável" é a palavra certa. Entre a professora que ainda vai apanhar os alunos que se estiram ou rebolam no chão e a outra professora que já desistiu até de sequer separar os dois alunos que no chão prosseguem um pugilato que terá começado quando ainda estavam em pé, vai uma larga gama de comportamentos espantosos. Olha-se, e a gente pergunta-se que país, que mundo futuro vai sair dali. Olha-se, e a gente pressente que não vão ser país e mundo onde apeteça viver.
Resta a esperança de que a Escola Básica 2/3 do Monte de Caparica não seja amostragem exemplar da generalidade das escolas do país. Mais: que seja excepção, se tanto podemos desejar. Há argumentos em favor dessa fresta de optimismo, se é que optimismo se lhe pode chamar. A escola está situada em área suburbana da Grande Lisboa, ali habitam em situação de'rnaior ou menor exclusão social minorias negras e ciganas, adivinha-se que é zona de misérias de vária ordem. Sempre podemos, enfim, aferrarmo-nos a estes argumentos para tentarmos esconjurar o pior. De súbito, porém, surgem sinais que não se incluem no quadro das atenuantes que em nossa própria defesa invocámos. Quando um miúdo que não tem nada o ar de ser excluído diz que gosta da escola porque através dela pode tirar a carta de condução, a questão é outra. Quando a reportagem nos informa que os grandes caminhos de futuro pessoal, os que têm poder de sedução bastante para desvalorizarem a aprendizagem no espírito dos garotos, são o futebol e a música (entenda-se: o pop/rock e as bandas juvenis que dão dinheiro, notoriedade e carro, sem a maçada de aprender o que a escola ensina), a questão volta a ser outra. E não é preciso ser bruxo para adivinhar que com uma outra sociedade, não sequer a caminho da perfeição possível mas simplesmente melhor, tudo seria diferente: ter carro não surgiria como o meio para o máximo prazer possível, o mito do futebolista superpago não seria o el-dorado de instalação na vida adulta, as bandas pop/rock regressariam ao lugar de segunda linha que podem ter no projecto de existência da generalidade de jovens que pressintam na vida horizontes minimamente largos.

O criminoso está cá fora

É claro que a reportagem de Jacinto Godinho só deu, das circunstâncias externas que explicam tudo ou quase tudo de quanto se viu, apenas sinais e, como era sua vocação, abordou quase exclusivamente a vida interna da escola. Nesse quadro, a atenção dada aos professores, co-protagonistas daquele universo tumultuoso, revelou atitudes diversas, desde a adopção de uma permissividade que pareceu aflorar por vezes a tácita demissão perante a anarquia e a violência, até uma estratégia que parte da não exclusão de ninguém para o êxito de resultados pelo menos aceitáveis, se não bons. Aí se colocou, também tacitamente, a questão de uma escola de permissão que, mesmo na hipótese de sucesso local e interno, formará jovens que irão integrar-se numa sociedade que é repressiva mesmo quando não o pareça. De facto, entre a pedagogia mais aberta, decerto a que melhor corresponde às exigências profundas do humanismo e aos conhecimentos actuais na área científica, e o mundo que fora da escola espera a criança de já não o seja, há uma contradição total, porventura geradora de embates dramáticos. De onde a imperiosa necessidade de mudar a sociedade para que a mais humana educação possa provar todos os seus méritos.
Até lá, é o que vimos: tendo perante si garotos que desde muito cedo são inoculados com os vírus de um mercantilismo exacerbado e exacerbante, verdadeiramente totalitário, a escola vê-se à beira da impotência e já é heróica quando não opta pela capitulação. Entretanto, uma reportagem destas faz entender que mesmo uma escola esforçada, com professores inteligentes, perseverantes e corajosos, é bem pouco para que possa tornar-se um dique eficaz perante uma avalancha que vem de longe. E que é preciso conter.


«Avante!» Nº 1309 - 30.Dezembro.1998