Nos corredores da morte
Em 18 de Dezembro passado, o Parlamento Europeu votou
favoravelmente uma resolução - proposta, nomeadamente, pela
Esquerda Unitária Europeia, grupo de que fazem parte os
deputados do PCP - reclamando a abolição da pena de morte em
todo o Mundo.
Independentemente da eficácia imediata de tal resolução, é
justo sublinhar a sua relevância e integrá-la na luta que
milhões de seres humanos, através dos séculos, têm travado
com esse objectivo.
Como se sabe, a pena de morte tem sido apresentada como um dos
mais graves e complexos problemas do Direito Penal, dado o
carácter irremediável, irreparável de que se reveste qualquer
eventual erro cometido na sua aplicação. (Além de que, como
também é sabido, nem todos os «erros» o são... muitas vezes
acontecendo não passarem eles de meios para se atingirem
inconfessáveis fins). Mas para além disso, e independentemente
disso, a pena de morte, em si, constitui uma brutal violação
dos direitos do homem e, designadamente, do mais elementar de
todos eles - o direito à vida - , pelo que, a luta pela sua
abolição, se apresenta como um imperativo da nossa condição
humana.
A abordagem desta matéria implica, necessariamente, uma referência ao facto de Portugal ter sido o primeiro país da Europa a abolir a pena de morte, em 1867, e que mereceu, então, o caloroso aplauso do grande escritor francês Victor Hugo. A dimensão da importância histórica e humana desta medida pode avaliar-se melhor se se tiver em conta que, nos fins de 1990, cerca de uma centena de países conservava e aplicava a pena de morte, cerca de três dezenas mantinha-a na Lei embora não a aplicasse e apenas 36 países a tinham abolido; e que, segundo a Amnistia Internacional, no ano de 1995 foram executadas 2932 pessoas em 41 países, e condenadas à morte 4165 em 79 países. E se é certo que posteriormente se verificaram evoluções positivas, a verdade é que em quase metade dos países do Mundo a pena de morte, na Lei ou na prática, continua a existir - e a exigir, portanto, a continuação e intensificação da luta pela sua total e definitiva abolição.
A resolução aprovada pelo Parlamento Europeu refere
expressamente, e condena, o número de execuções que tem lugar
todos os anos em países como a China, o Irão, a Arábia Saudita
e, particularmente, os Estados Unidos da América. Aliás, é
sintomático que a resolução tenha sido aprovada alguns dias
antes da concretização, neste país, da 500ª execução desde
1977. O texto aprovado realça muito justamente a situação do
jornalista e activista afro-americano Mumia Abu-Jamal, acusado de
ter morto um polícia no Estado da Pensilvânia e, por isso,
condenado à morte em 1982 num julgamento fantoche - e que
continua a ver sucessivamente recusados pelo Supremo Tribunal dos
EUA os seus pedidos de revisão do processo.
O caso de Mumia Abu-Jamal - como, de resto, toda a situação
existente nesta matéria nos EUA - é bem revelador da hipocrisia
contida na expressão «pátria dos direitos humanos» utilizada
pelos propagandistas norte americanos para designar o seu país e
com a qual pretendem esconder a brutal e permanente violação
desses direitos. Nos EUA, à desumanidade intrínseca da pena de
morte alia-se a adopção de critérios racistas e políticos,
visíveis em factos como os seguintes: em 1994, os negros, que
são cerca de 11% da população do país, constituíam 40% dos
condenados à morte, e nessa mesma altura, na Pensilvânia, onde
os negros são cerca de 9% da população, mais de 60% dos
condenados à morte eram negros(1). Quanto a Mumia Abu-Jamal, ele é de facto um preso
político, condenado à morte não por ter morto um polícia mas
pelas suas actividades políticas e pelos seus escritos. Na
realidade ele estava condenado há muito tempo, talvez desde os
seus 20 anos de idade, altura em que a sua ficha no FBI rezava
assim: «Trata-se de um indivíduo inteligente. Não tem cadastro
policial mas a natureza dos seus escritos impõe que ele figure
no registo nacional de segurança».
Quando foi preso, Abu-Jamal era Presidente da filial de Filadélfia da Associação de Jornalistas Negros. Activista político desde muito jovem na luta contra o racismo e os preconceitos políticos e raciais do sistema judicial norte americano, foi membro dos Panteras Negras nos anos sessenta e, na década seguinte, enquanto jornalista radiofónico, tornou-se célebre pela acutilância das suas intervenções que lhe valeram a designação de «a voz dos que não têm voz». Na noite de 9 de Dezembro de 1981, foi espancado pela polícia em Filadélfia e, posteriormente, acusado de ter morto um polícia. Julgado por um juiz célebre por deter o record de condenações à morte nos EUA, Abu-Jamal foi vítima de um escandaloso julgamentos no qual valeu tudo para que o objectivo pretendido fosse atingido: foi, obviamente, condenado à morte e encontra-se há catorze anos no corredor da morte da prisão de Huntington.
Em vários países do Mundo foram criados comités de
apoio a Mumia Abu-Jamal que desenvolvem múltiplas iniciativas
solidárias. Ângela Davis - a célebre activista dos direitos
cívicos e militante comunista que em 1971 escapou a uma
condenação à morte graças a um forte e amplo movimento
internacional de solidariedade - deslocou-se a Estrasburgo em
Dezembro passado a fim de pedir aos deputados europeus que
intercedam a favor de Abu-Jamal e pela abolição da pena de
morte nos EUA. Para Ângela Davis, «salvar a vida de Mumia
significa impedir outras execuções e travar um processo que se
tem acelerado de há um ano a esta parte». E disse ainda: «Eu
quero lançar um apelo apaixonado pela vida deste homem que
simboliza simultaneamente o combate pela abolição da pena
capital e o combate pela justiça. Eu não estaria aqui hoje,
convosco, se um dia a minha irmã e Louis Aragon não tivessem
desfilado em Paris com mais 100.000 pessoas para me salvar a
vida».
Tal como aconteceu com Ângela Davis há 27 anos, a solidariedade
e a pressão internacional constituem os meios mais eficazes para
salvar a vida de Mumia Abu-Jamal e de vários outros que, como
ele, habitam os desumanos corredores da morte da «pátria dos
direitos humanos»...
(1) «Ao vivo do corredor da morte», Mumia Abu-Jamal, «Campo das Letras»