Pinochet, o vilão
de uma peça de Molière


Na América Latina, a euforia provocada pela prisão de Pinochet em Londres já se dissipou.
O velho ditador inspira repugnância. Mas os debates travados no Continente, do México à Patagónia contribuiram durante a longa espera para que a alegria inicial cedesse gradualmente lugar a sentimentos de apreensão.

Não passou despercebida a rapidez com que em diferentes países europeus foi também pedida a extradição de Pinochet. Estranha e não esperada unanimidade.
A esquerda latino-americana (l) comenta igualmente artigos publicados em Espanha em que políticos e escritores de direita perguntam por que não foi detido Fidel Castro quando em Outubro visitou a Extremadura, após a Cimeira do Porto?
A atitude ambígua assumida pelos EUA envolve outro convite à reflexão. O Governo assiste, adoptando uma postura que o «New York Times» define como opção oficial de baixo perfil. Mas Madeleine Albright, secretária de Estado e porta-voz dos sectores mais conservadores da socidedade norte-americana, mandou desclassificar documentos secretos relativos ao assassínio de Letelier. Porquê? Inesperadamente admitiu que os EUA cometeram graves erros no Chile. As cumplicidades no desenvolvimento da famosa «Operação Condor» começam a vir à tona. Confirma-se assim a previsão de Fidel segundo a qual as Administrações norte-americanas, para limparem a imagem, tendem periodicamente a pedir desculpa por crimes cometidos por outras. Já assim aconteceu quando a actual desclassificou documentação secreta relativa a planos de agressão armada contra Cuba...
A decisão dos Lordes foi recebida sem surpresa, e a do secretário do Interior também não provocou reacções de espanto. A Câmara dos Lordes é uma instituição muito conservadora apesar da sua composição multipartidária. Os seus magistrados reflectem-lhe o espírito. A dualidade de critérios traduz o seu farisaismo. Nunca, que se saiba, a Câmara dos Pares Britânica se manifestou, através dos seus juizes, a favor do julgamento dos ministros e proconsules imperiais ingleses responsáveis por crimes de genocídio e chacinas medonhas cometidos nos últimos três seculos, em incontáveis lugares do mundo, desde a Índia ao Kénia, da China à Africa do Sul, do Sudão à Malásia.

Porquê, então, Pinochet?

Não é por acaso que nos media europeus se multiplicam apelos sugerindo a extradição, quando tal for possível, não apenas de ex-ditadores latino-americanos, como o argentino Videla, mas de chefes de Estado em exercício como o jugoslavo Milosevitch, o líbio Kadhafi e o iraquiano Sadam Hussein. A apologia da extraterritorialidade pela direita europeia carece de espontaneidade; não brota de um sentimento de amor à liberdade, de respeito pelo Direito. Não. As suas motivações são outras. Não é por acaso que os incondicionais de Maastrich e Amsterdão participam do coro. A defesa da extraterritorialidade prenuncia ameaças à soberania dos povos de contornos ainda nebulosos.
O juiz espanhol Baltazar Garzón actua como um magistrado com fome de palco. Li algures que disfarça mal tendências megalómanas.
Não me consta que em momento algum tenha manifestado a intenção de meter na prisão para posterior julgamento ex-ministros e generais franquistas, responsáveis por cadeias de crimes e actos violadores dos direitos humanos.
A vaga de euforia que a prisão de Pinochet desencadeou inicialmente pelo mundo fora não oculta uma evidência: os interesses e objectivos que em muitos países levam as forças do establishment a apoiar a prisão e a extradição de Pinochet são totalmente allheios à problemática da defesa dos direitos humanos.
O general Augusto Pinochet deixará na história o seu nome ligado a uma ditadura militar que, no desenvolvimento de uma contra-revolução que visava a perfeição cometeu crimes medonhos. Mas não foi um criador, apenas o comandante que zelou pela execução de um plano concebido, no fundamnental, em Washington. Cumpriu o papel de instrumento.Querem fazer dele agora, com objectivos inconfessáveis, um bode expiatório.
Entretanto, juiz algum, em Espanha ou no Reino Unido, de Garzón aos lordes-juristas ousou até hoje levantar o dedo acusador contra os verdadeiros responsáveis pela orgia de violência irracional que se abateu sobre o Chile a partir do 11 de Setembro de l973. Porquê? Porque entre eles figuram ex-presidentes dos EUA, secretários de Estado, generais e almirantes daquele país.
Nesse silêncio está a chave da dramática farsa jurídico-institucional em curso. Ninguém se atreve, em Espanha e na Inglaterra a colocar sequer a hipótese da punição (mesmo póstuma) dos grandes responsáveis pelos crimes do Chile.

O «efeito» Chile

Um aspecto do caso quase esquecido pelos media europeus é aquele a que poderíamos chamar o efeito Chile. A direita, na pátria de Recabarren e Allende, tirou dividendos da prisão do seu herói. A decisão do secretário do Interior britânico tornou os generais mais arrogantes. Não estão criadas por ora condições para um golpe militar. Mas a esmagora maioria do Corpo de Oficiais, sobretudo no Exército, reagiu com indignação ao gesto de Londres. Sentimentos antiespanhóis e antibritânicos manifestam-se em provocações e arruaças. A campanha sensibiliza sectores da pequena burguesia distanciados da direita. Pinochet começa a surgir como mártir aos olhos de sectores sociais que ultrapassam a clientela habitual da direita. A democracia-tutelada do Chile principia a pagar a factura da Operação Pinochet.
O destino de Augusto Pinochet é, na peça em exibição, de desfecho desconhecido, secundário. Mas parece util recordar que segundo a lei espanhola um cidadão com a idade de Pinochet não pode - se a memória não me falha - ser condenado a qualquer pena de prisão.
O juiz Garzón não terá levado em conta esse pormenor. Conseguiu o que pretendia. O seu nome anda de boca em boca em todos os continentes. A popularidade conquistada não oculta o óbvio: este juiz comporta-se como o Tartufo de Molière numa moderna farsa em que a Hipocrísia se esconde sob o manto respeitável da Lei.

(l) No Chile,o Partido Comunista,por motivos compreensíveis, apoiou desde o início o pedido de extradição.


«Avante!» Nº 1310 - 7.Janeiro.1999