40º aniversário da Revolução Cubana |
Fidel
fala ao mundo do mesmo balcão
onde há 40 anos proclamou a vitória da Revolução
Por Miguel Urbano Rodrigues
Desde as grandes jornadas do Abril português que não festejava pela noite adentro a vitória de uma Revolução. Aconteceu agora em Santiago no cenário caribenho capital do Oriente cubano.
A escolha nasceu da história real. A primeira República Cubana foi proclamada na Província de Santiago após a libertação dos escravos por Carlos Manuel de Cespedes, o pai da pátria. Foi ali que se travaram as grandes batalhas da guerra dos Dez Anos, iniciada em 1868. Foi no Oriente que Martí, Maceo e Máximo Gomez desembarcaram em l895 na arrancada da Segunda Guerra de Libertação. É também no Oriente que se localizam o Quartel Moncada e a Sierra Maestra, cenário de uma saga que abriu o caminho à primeira revolução socialista da história das Américas.
Santiago é, por direito histórico, a cidade herói de Cuba, berço de uma cadeia de revoluções. Ninguém lhe contesta o título.
Cabia-lhe, portanto, ser sede dos festejos comemorativos do 40º aniversário da vitória da Revolução Cubana.
Da Praça Céspedes se dirigiu Fidel Castro ao mundo e aos cubanos na noite do primeiro dia do último ano do milénio. Falou do balcão azul onde apareceu há quatro décadas, de verde olivo, em plena juventude, para anunciar o triunfo da Revolução e o fim da ditadura que oprimia o povo.
O cenário não mudou. Mas os belos edifícios históricos foram restaurados e apresentam-se rejuvenescidos. A fachada austera da Casa de Diego Velasquez - o primeiro palácio construído na América pelos espanhóis - contrasta com a brancura faíscante do velho Ayuntamiento, e com o amarelo forte da catedral barroca.
Tudo na harmoniosa praça colonial empurra para a meditação sobre séculos de uma história sempre tempestuosa desde o desembarque de Colombo nas praias de Holguin, em 1492. Tudo teve na festa o toque da simplicidade.
Na abertura, um talentoso pianista cubano executou peças clássicas enquanto em dois ecrãs gigantes desfilavam imagens que permitiam reviver fases da epopeia revolucionária. Entre os convidados, vindos dos quatro cantos do mundo, havia gente de trinta países. Revolucionários como o português Vasco Gonçalves, o salvadorenho Shaffick Handel, da Frente Farabundo Martí, o italiano Fausto Bertinotti, da Refundação Comunista Italiana. Entre grandes escritores que trouxeram a sua solidariedade à Revolução Cubana, dois Prémio Nobel, José Saramago e Gabriel Garcia Marquez. Presentes também pintores de prestígio mundial, como o equatoriano Guayasamin.
Muitos, talvez a maioria dos convidados, estrangeiros e cubanos, eram homens e mulheres que mantêm uma relação directa ou indirecta com a história. A meu lado, à direita, sentava-se Ramón Pez Ferro, participante do assalto a Moncada, hoje deputado à Assembleia Nacional do Poder Popular e presidente da Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina (OSPAAAL). À minha esquerda tinha uma jovem boliviana de beleza deslumbrante. Era a sobrinha de José Arana Campero, o Chapaco da guerrilha do Che, cujas ossadas haviam sido colocadas dias antes, em cerimónia nacional, no Mausoléu de Santa Clara. Outros familiares de peruanos e bolivianos da guerrilha de Ñancahuazu estavam igualmente na Praça, convidados pelo governo cubano. A Revolução cultiva a memória dos seus mortos e daqueles que, como internacionalistas, assumiram os ideais do povo de Martí.
Fidel Castro apareceu sozinho, como em Janeiro de 1959, no balcão do centro, que domina a praça. Nas duas sacadas laterais, também de pé, membros da Comissão Política do CC do Partido Comunista de Cuba.
Fidel pronunciou um discurso austero, simples pela linguagem, denso pelo conteúdo. Falou durante hora e meia.
A noite da vitória
Numa atmosfera de
silêncio absoluto Fidel principiou por recordar a noite em que
há exactamente quarenta anos, daquele mesmo balcão, anunciou a
vitória sobre a tirania de Batista e o início de uma
revolução que se prefigurava profunda, radical.
Parecia então impossível aquilo que estava a acontecer.
Fidel evocou os trágicos episódios que assinalaram o começo do
choque militar com a ditadura. Após o desastre de Alegria del
Pio, as duas dezenas de expedicionários do Gramma que,
dispersos, escaparam ao massacre, dispunham apenas de 7 fuzis. E,
contudo, o impossível fez-se realidade com o tempo. Esse punhado
de sobreviventes foi o núcleo do chamado Exército Rebelde que
em menos de 24 meses derrotou as Forças Armadas de Batista,
financiadas e armadas pelo imperialismo norte-americano.
Como tão pouca gente conseguiu ganhar a guerra contra um inimigo
poderoso?
As armas escassearam sempre. Mais de 90% foram tomadas ao
inimigo. Do estrangeiro, contrariamente ao que a propaganda
contra-revolucionária afirmava, chegaram pouquíssimas. A única
excepção foi uma remessa de fuzis oferecidos pelo almirante
Larrazabal, após o derrubamento da ditadura na Venezuela.
E, contudo, era tal a determinação de lutar e tamanha a certeza
da vitória que imediatamente depois de derrotada a ofensiva de
verão do exército de Batista, o Che saiu rumo a Escambray no
comando de uma coluna de 140 homens, e Camilo Cienfuegos à
frente de outra com uma centena. O fecho dessa campanha foi a
tomada de Santa Clara na sequência de uma caminhada de 400
quilómetros realizada em condições inimagináveis através de
territórios controlados pelas tropas do governo de Batista.
Dos actuais 11 milhões de habitantes da Ilha, mais de 7 milhões
não haviam nascido. Fidel sabe que fala para gerações que não
viveram aqueles acontecimentos. Os jovens de hoje não existiam
quando - após 761 dias de guerra - a ditadura se desmoronou sob
os golpes do Exército Rebelde.
Um mundo diferente
Fidel fez questão
de dar ênfase às diferenças. Produziram-se no mundo
transformações prodigiosas, umas boas, muitas inquietantes. A
URSS desmoronou-se. A revolução tecnológica e científica abre
ao homem possibilidades quase infinitas de melhorar a vida das
grandes maiorias. Mas isso não está a ser feito.
Fidel tinha 32 anos quando entrou vitorioso em Santiago; hoje tem
72. Adquiriu uma sabedoria que surpreende até os seus inimigos.
Ele próprio lembrou que não é o mesmo homem que há quatro
décadas se dirigira ao povo daquele balcão. Estava vestido da
mesma maneira e as suas convicções são as mesmas. Mas hoje o
seu discurso e a sua mundividência reflectem as mudanças
ocorridas em Cuba e na Terra.
Na Cuba de l959, 30% da população era analfabeta; na Cuba do
final do milénio o analfabetismo foi erradicado. Citou números,
contrapondo o panorama de miséria, podridão, ignorância e
desigualdade social que Cuba então exibia ao oferecido hoje por
uma sociedade socialista onde mais de 600 000 cidadãos têm
diplomas universitários e o total de médicos ultrapassa os 64
000, a mais elevada percentagem do mundo. O ensino, antes
privilégio de uma minoria, é hoje obrigatório até ao nono
ano, e totalmente gratuito, bem como os cuidados de saúde.
Nesta jornada comemorativa da vitória de 59, o Presidente de
Cuba não dedicou atenção prioritária às dificuldades do
Período Especial. Mas recordou que uma «extraordinária página
de glória e de firmeza patriótica e revolucionária foi escrita
nestes anos», exigindo do povo sofrimentos e sacrifícios
duríssimos. As dificuldades do presente foram no discurso ponte
para a análise dos problemas angustiantes que a humanidade
enfrenta na viragem do milénio. Preocupa-o muito o rumo que a
humanidade está a ser forçada a seguir num contexto de
unipolaridade. Enquanto fazem a apologia do capitalismo
globalizado neoliberal e tratam de o levar às ultimas
consequências, os EUA sonham já com colónias futuras na Lua e
em Marte. Na Terra, contudo, promovem uma política que empurra a
humanidade para uma catástrofe. Assistimos inclusive a uma
perigosa agressão ao planeta, que é a pátria comum do homem.
O sistema do capitalismo neoliberal aparece-lhe como
insustentável. As leis do mercado impostas são cegas e os seus
efeitos, ruinosos; destroem a sociedade e a própria Natureza.
Presenciamos, impotentes, o desenvolvimento sistemático de uma
estratégia alucinatória, tão perigosa que os defensores do
sistema começam a ter dúvidas sobre o resultado final, a sentir
medo das consequências dos seus actos e da sua incapacidade para
controlar as crises que desencadeiam.
Os teólogos da globalização neoliberal insistem em ligar a
liberdade do homem a uma liberdade irrestrita do mercado,
considerando ambas como indissociáveis. Trata-se de uma
aberração que faz do homem uma simples mercadoria. Ora, na
realidade «sem igualdade e fraternidade, que foram lemas
sacrossantos da própria revolução burguesa, não pode nunca
haver liberdade; a liberdade e a igualdade são absolutamente
incompatíveis com as leis do mercado». Este é cada vez mais
marcado pela irracionlidade.
A antecâmera da tragédia
Na opinião de Fidel
a humanidade está a ser empurrada para a antecâmara do que pode
ser uma tragédia. Recorrendo a factos e números esboçou o
quadro em que se desenvolve e funciona o mercado, feroz como uma
besta, irracional. Os teólogos do neoliberalismo actuam -
afirmou - como fundamentalistas de um novo tipo cujo projecto de
sociedade é devastador e inviável. No aprofundamento da
análise citou, como exemplo esclarecedor, a instrumentalização
dos fundos de pensão multimilionários que arrecadam nos EUA uma
massa gigantesca de capitais que é utilizada no jogo
especulativo das bolsas. A crise iniciada na Ásia Oriental está
agora mais próxima; os seus tentáculos ameaçam a América
Latina, sobretudo o Brasil. O que se passou na Tailândia e na
Coreia do Sul não serviu de emenda. O louco jogo do dinheiro
prossegue. Os senhores do mercado exigem mais privatizações,
mais desregulamentação. Continuam a investir contra o Estado do
Bem Estar Social, tentando minar-lhe os alicerces. Pretendem que
o Estado se demita da sua histórica função social e reduza
ainda mais a sua intervenção na área da economia.
Fidel, para tornar mais transparente a problemática abordada,
citou o caso das condições brutais impostas pelo FMI ao Brasil
em troca de ajuda financeira exigida por uma crise resultante em
grande parte das próprias políticas que lhe haviam sido ditadas
por Washington. Recordou também episódios pouco conhecidos como
aquele que envolveu um gigantesco Fundo de Cobertura
norte-americano dirigido por dois Prémio Nobel de Economia. Ao
entrar em crise na sequência dos seus negócios aventureiros (em
que estavam envolvidos 75 bancos também comprometidos em
operações especulativas no valor de l20 mil milhões de
dólares) foi salvo in extremis com a ajuda do Reserve Board dos
EUA. A estória foi divulgada por Allan Grenspan, director desse
poderoso banco central. Se o Fundo em questão fosse à
falência, uma crise incontrolável explodiria, na opinião de
Greenspan, nos EUA, logo adquirindo dimensão mundial.
Que confiança - pergunta Fidel - pode merecer um sistema cuja
actual dependência das simples vicissitudes de um Fundo de
Cobertura e de especulações bolsistas é reconhecida pelo
próprio Banco Central dos EUA? Como reagir ante a ameaça de
crises que rapidamente podem assumir uma dimensão planetária,
colocando em perigo a própria continuidade da humanidade
civilizada?
Motivo de orgulho
Do diagnóstico e da
crítica, Fidel passou para a exortação.O discurso voltou a
tomar a juventude como interlocutora principal.
A humanidade não pode esperar, passivamente, que o mundo venha a
explodir, vítima do irracionalismo neoliberal.
Os cubanos têm motivos de sobra para estar orgulhosos da
trajectória da sua revolução. Fidel acredita que seria hoje
muito difícil, num contexto de unipolariudade, a vitória de
qualquer revolução similar à cubana. «Povo algum - disse -,
por maior e mais rico que seja pode resolver os seus problemas
isoladamente, menos ainda um país pequeno ou médio. Mas o
exemplo de Cuba é um guia na luta humanista contra a
globalização capitalista neoliberal, que dia-a-dia arrasta a
humanidade para a beira do abismo.»
Na Ilha bloqueada houve felizmente tempo suficiente para o
enraizamento das conquistas realizadas e para organizar a
resistência contra todo o tipo de ameaças externas. Cuba cumpre
hoje um papel importantíssimo na batalha das ideias, numa frente
que urge alargar, mobilizando energias e esforços a nível
mundial.
Tem sido elevado em sofrimento e sacrifícios o custo da defesa
da Revolução Cubana. Mas valeu a pena o esforço despendido.
Para a compreensão da história recente tem por isso grande
valor o exemplo das gerações que mudaram a vida em Cuba.
O futuro próximo aparece a Fidel carregado de ameaças e
perigos. Mas não lhe afectam o ânimo e a esperança. Os
desafios que ele coloca à juventude - herdeira dos combatentes
de Moncada, da Sierra e de Girón - são fascinantes. Nenhuma
causa para os revolucionários cubanos é hoje mais importante do
que a causa da própria humanidade. A «distribuição justa das
riquezas que os seres humanos sejam capazes de criar»
aparece-lhe como a única alternativa viável ao neoliberalismo.
«Que cesse a tirania - são palavras suas - de uma ordem que
impõe princípios cegos, anárquicos e caóticos, que conduz a
espécie humana ao abismo. Que sejam preservadas as identidades
nacionais. Que em cada país sejam protegidas as culturas. Que
prevaleçam a igualdade e a fraternidade e com elas a verdadeira
liberdade. Não podem continuar a crescer as insondáveis
diferenças entre ricos e pobres dentro de cada país e entre
países. Devem pelo contrário atenuar-se progressivamente até
cessarem um dia. Que seja o mérito, a capacidade, o espírito
criador e a contribuição do homem para o bem estar da
humanidade e não o roubo, a especulação ou a exploração dos
mais fracos aquilo que determina o limite das diferenças. Que o
humanismo passe a ser praticado com actos e não com slogans
hipócritas.»
Fidel está convicto de que os próximos 40 anos serão decisivos
para o mundo. Exorta por isso a juventude cubana a lutar pelo seu
país e pela humanidade, na certeza de que as tarefas serão
agora muito mais complexas e difíceis do que as do passado.
Foi com palavras de confiança no homem que fechou o seu
discurso, pronunciado numa atmosfera mágica, no mesmo lugar em
que, com a alegria da vitória no rosto, falara há 40 anos
exortando o seu povo a partir à conquista do céu na terra.
O mundo acompanhava então a alvorada de uma revolução que
pretendia ser diferente de todas as anteriormente irrompidas na
América. Mas ninguém, nem os mais optimistas, podia naqueles
dias de l959 prever que o povo de Cuba iria ser sujeito de uma
das grandes revoluções que marcaram a história da humanidade.
Ninguém imaginava também que o jovem comandante guerrilheiro
que esmagara a tirania de Batista com os seus companheiros do
MR-26 assumiria com os anos o perfil de um grande estadista,
porta-voz de um novo humanismo num século que finda num clima de
medo e irracionalidade. E isso aconteceu.
Os estrangeiros amigos de Cuba que estiveram em Santiago naquela
noite tiveram a oportunidade de confirmar a dimensão e a
complexidade do afecto que liga o povo de Marti a Fidel, seu
continuador. Findo o acontecimento, a atmosfera de magia não se
dissipou logo. A festa prosseguiu pela noite adentro.