40º aniversário da Revolução Cubana |
Para
onde caminha
a Revolução Cubana?
Transcorridos 40 anos de existência muita gente pergunta: o que é e para onde caminha a Revolução Cubana?
As respostas não dependem somente da opção ideológica e da postura ética.
Poucas revoluções têm neste século suscitado debates tão apaixonados e conclusões tão dissemelhantes e, com frequência, antagónicas.
Cuba é um tema perante o qual raríssimas pessoas não tomam posição. Os juízos maximalistas são muito comuns. A Revolução é amada, glorificada, também negada, cdiada, satanizada.
A maioria dos
visitantes da Ilha tem dificuldade em entender o espectáculo da
vida e o movimento de uma revolução que não se esconde, mas
também não se revela.
Contrariamente a uma opinião muito generalizada, Cuba é um
país muito difícil de compreender. O carácter extrovertido do
seu povo engana os observadores - já não falo dos turistas -
que lhe desconhecem a história. E sem o conhecimento profundo
desta não é possível assimilar as contradições do presente,
separando o que na Revolução é fundamental do acessório.
Conheci turistas que sorriam ao saber que Fidel gosta de repetir
que Martí foi «o autor intelectual de Moncada». Não é fácil
convencê-los de que Fidel tem razão no que diz. O eticismo
cubano, a fidelidade a uma concepção moral da história e do
acto revolucionário é uma componente básica do heroísmo deste
povo. Pode parecer quixotesco, mas sem esse eticismo, os
derrotados de Moncada não teriam embarcado no Granma, não
haveriam destruído o exército de Batista. Sem ele o desfecho de
Girón teria sido outro e milhares de cubanos não teriam
atravessado o Atlântico para lutarem em Angola pela libertação
de um povo africano. Sem ele a resistência à agressão imperial
norte-americana teria sido uma impossibilidade. Sem ele o povo
não teria respondido maciçamente ao apelo de Fidel quando, em
l989, prevendo antecipadamente o colapso do socialismo na Europa,
proclamou que Cuba resistiria e continuaria a ser uma sociedade
socialista mesmo que a União Soviética se desagregasse um dia.
Um dos factores que dificultam a compreensão da Revolução
Cubana é precisamente a naturalidade com que os seus dirigentes
assumem desafios que na aparência estariam acima das forças
humanas. E, contudo, eles repetem, afinal, o grito de Demajagua,
o protesto de Maceo em l878, repetem Martí, a saga da Sierra
Maestra. Não aceitam a lógica perversa da realpolitik.
Perseguem a utopia com a tenacidade de personagens mitológicas.
E tão familiarizados estão com esses desafios que se propõem,
ano após ano, metas consideradas inatingíveis por outros
dirigentes e povos. Não são cavaleiros da utopia (embora a
namorem) e não agem por ambição nem por vaidade. Pelo
contrário. Tal atitude tem na raíz uma modéstia incomum.
Acostumaram-se tanto ao longo dos anos a transformar o
impossível em possível que actuam com humildade por lhes
parecer muito natural o que a outros assustaria. Com a
peculiaridade de que o sonho e o eticismo se têm transmitido de
geração para geração, ao contrário do que ocorreu na URSS.
Seria, entretanto, um erro concluir apressadamente que a
Revolução Cubana colimou todos os seus grandes objectivos. A
Revolução é imperfeitíssima. A geração da Sierra e de
Girón, tal como aquela que desponta, tem consciência disso.
Ética e humanismo
Não cabe aqui
analisar os factores que contribuíram para reduzir a uma
dimensão terrena o sonho. Em primeiro lugar não existe
revolução perfeita. A Cubana não podia ser a excepção.
Creio, entretanto, que ela foi mais longe e se defendeu melhor do
que seria previsível no contexto histórico em que irrompeu e
evoluiu. Frente à agressão e ao cerco imperial, conseguiu
também contrariar a lógica aparente da história. Mas
obviamente ela não podia arrombar as portas do paraíso, como
acreditavam no início dos anos 60 milhões de jovens em dezenas
de países.
A chamada fase de transição tornou logo transparente que a
fraternidade artificial das primeiras semanas iria ceder o lugar
a uma intensa luta de classes. Não foi por acaso que o
Presidente e muitos ministros do primeiro governo mudaram de
campo. Urrutia, por exemplo, não era um mau homem; mas não
estava preparado para suportar a ideia de que a legalidade
nascida do compromisso revolucionário teria obviamente, na
dialéctica da luta, de se sobrepor à legalidade farisaica dos
códigos redigidos por uma burguesia cujos interesses eram
incompatíveis com o ideário humanista de Fidel e dos
companheiros. A geração que fez a guerra quando tomou o Poder
aprendeu muito em pouco tempo. Por vezes caminhando através de
um mar de erros. Um dos seus grandes méritos foi a capacidade
revelada na assumpção de uma postura de realismo
revolucionário sem renunciar ao seu eticismo, sem perder um
ápice do seu humanismo.
Não foi nada fácil construir um Estado de novo tipo e um
Partido Comunista diferente dos que existiam no Continente, tal
como não foi fácil a iniciação na arte do relacionamento com
outros povos e governos, sem concessões. Com frequência a
relação com os amigos exigiu mais tacto do que o diálogo com
os adversários.
Para mal de Cuba, o afundamento do socialismo na Europa,
sobretudo o terramoto que destruiu a URSS, produziu-se no preciso
momento em que a Ilha, atravessados anos muito difíceis, e
reflectindo sobre erros cometidos, se preparava para um novo e
apaixonante desafio: a construção de um socialismo de cores
autenticamente cubanas, distanciado de modelos estrangeiros.
Uma tarefa ciclópica
Significativamente,
quando no início da derrapagem da perestroika, Gorbatchev
, Iakovlev (seu mestre na perfídia) e as forças que, invocando
ainda o nome de Lenin e a necessidade de um regresso aos
princípios e à prática da democracia socialista começavam a
destruir o Partido e o Estado Soviético - nessa época que hoje
parece nevoenta -, em Cuba vivia-se uma fase de debate
ideológico criador que visava à correcção de erros cometidos
no chamado período cinzento quando a Ilha pagou um alto preço
pela aplicação de formulas e soluções importadas que
reforçavam a tendência para a burocratização, afectando a
imaginação e o espírito revolucionário daquilo a que hoje se
chama o marxismo-martiano. A história demonstrou que os dois
projectos apontavam para fins antagónicos.
Com o desastre soviético, a sobrevivência passou a ser a
primeira prioridade. Preservar o socialismo e as suas conquistas
foi tarefa ciclópica numa época em que a Casa Branca e o
Congresso norteamericano, convictos de que Cuba capitularia,
intensificaram o bloqueio com as leis Torricelli e Helms-Burton,
desrespeitando a Carta da ONU e tripudiando sobre princípios do
Direito Internacional constantes de tratados subscritos pelo
próprio governo de Washington. O povo cubano, porém,
agigantou-se na resposta a essa ofensiva demolidora, que teve
continuidade na chamada crise dos balseros. Resistiu. O Período
Especial enquadrou uma luta quase ignorada nos países ricos do
Ocidente, luta na qual a participação do povo foi decisiva.
Admito que nenhum outro, neste momento da história teria
suportado, sem perder a alegria e a combatividade, privações
comparáveis. Aguentou, comendo oitenta gramas de pão por dia,
sem ver carne no prato durante semanas, quase sem gorduras
animais ou vegetais, com a electricidade racionada,caminhando a
pé ou de bicicleta.
Após uma queda brutal do PIB, a economia cubana, antes
totalmente vinculada à dos países socialistas da Europa,
começou a recuperar a partir de l995, desmentindo todas as
previsões. Hoje já não se pergunta se Cuba resistirá, mas sim
qual a taxa de crescimento da sua economia. Pergunta-se quando
surgirá o peso convertível., que novas vitórias se perfilam no
horizonte, no quadro do processo de recuperação da sua
economia.
Claro que o povo cubano pagou ,e continua apagar, um preço
elevado pela adopção de, medidas exigidas pela necessidade da
sobrevivência da Revolução. O crescimento galopante do turismo
- hoje primeira fonte de divisas -, o bimonetarismo e, de modo
geral, os efeitos perniciosos da existência de «bolsões
capitalistas» no organismo económico fizeram inevitáveis
estragos no tecido social.
Todos esses males e outros similares abriram feridas cuja
cicatrização não será nem rápida nem fácil.
Perigos
A vida quotidiana
tornou-se muito mais complexa. Nas famílias, os problemas do
abastecimento e dos transportes forçam a hábitos e austeridade
e a sacrifícios que na sequência dos meses e dos anos são
particularmente duros de suportar A prostituição cresceu muito
com o auge do turismo, a droga introduzida pelos visitantes
começa a aparecer, a fuga aos impostos e a existência de
aluguéis de casas ilícitos constituem preocupações do
governo, a marginalidade e a delinquência aumentam, a
corrupção é uma realidade que afecta inclusive escalões
inferiores da Administração.
Esses males eram inevitáveis. O que me surpreende, entretanto,
é a capacidade que a sociedade cubana, como totalidade, tem
demonstrado para deles se defender, criando os anticorpos
adequados. Subestimar os perigos e ameaças inerentes ao
hibridismo que hoje caracteriza certos aspectos da vida cubana
não seria uma atitude responsável. Mas o que me parece estranho
não é tanto a gravidade e a complexidade das formas de
comportamento de pessoas e grupos que acusam a contaminação dos
vírus capitalistas, mas as reduzidas proporções do fenómeno.
Em Cuba é intenso o debate travado sobre os perigos e sequelas
do trabalho em «bolsões capitalistas» no período especial.
Alguns dos melhores discursos pronunciados no Congresso da União
dos Escritores e Artistas (V.«Avante!» de 17.l2.98)
evidenciaram uma consciência muito viva da complexidade do
problema.
A agravar tantos factores negativos, a agricultura acusa as
consequências de dois anos de dura seca e das devastações
provocadas por dois furacões, o Lilly e o George.
Mentira e manipulação
Não causa espanto
que os inimigos da Revolução recorram à mentira e
manipulação citando aspectos negativos da realidade cubana para
extraírem conclusões falsas. O povo cubano - hoje o mais
instruído e culto do Continente - está acostumado a esses
processos e conhece de cor a lengalenga. Mas há calunias que
doem. Sobretudo as que pretendem apresentar o regime cubano como
uma ditadura.
No momento em que um Relatório da Amnistia Internacional acaba
de revelar que nos EUA os direitos humanos são desrespeitados
ostensivamente, por vezes com requintes de barbárie que trazem
à memória praticas do III Reich, é um acto de hipocrisia
insistir em campanhas que esboçam de Cuba o retrato de um país
sem liberdades, com as cadeias atulhadas de presos políticos e a
repressão uma rotina. Isso dói aos cubanos que se orgulham
precisamente da estreita relação que na Ilha existe ente o
humanismo revolucionário socialista e o respeito pelos direitos
do cidadão, como indivíduo. Como poderia uma sociedade que fez
da Educação e da Saúde bandeiras da sua ideologia aceitar a
ideia da tortura, admitir os métodos que os esbirros de Batista
aplicaram em heróis do 26 de Julho como Abel Santamaria e tantos
outros? Por si só o reduzido número de polícias nas ruas de
uma capital como Havana funciona como desmentido às estórias
mirabolantes postas a circular sobre «a atmosfera repressiva»
que existiria em Cuba. Aqueles que negam a participação popular
em Cuba também mentem conscientemente. O estrangeiro que conhece
um pouco a vida cubana logo se apercebe de que o nível de
intervenção do cidadão na vida da comunidade é muito mais
elevado do que na Europa. No plano político como no social.
Entretanto, a pressão que a engrenagem mediática exerce nos
países informatizados sobre a opinião pública, num processo
manipulatório assustador, é tão esmagadora que mesmo gente
séria e amiga de Cuba acaba por assimilar alguns dos
estereótipos da propaganda contra-revolucionária. Até um
escritor progressista como Manuel Vasquez Montalbán se deixou
influenciar. Num livro recente definiu Fidel como «um déspota
iluminado». Ora qualquer paralelo entre Fidel e Frederico II da
Prússia, Catarina II da Rússia, ou mesmo Pombal é injurioso.
Não só; é também absurdo e ridículo.
Opção socialista
A intervenção de
Fidel Castro nas tarefas do Conselho de Ministros, ao qual
preside, foi progressivamente diminuindo por sua própria
iniciativa. Em Cuba não é segredo para ninguém que a
estratégia da recuperação económica da Ilha foi concebida
sobretudo por Carlos Laje e aplicada sob a sua direcção. Fidel
não é um émulo de Frederico II, mas um cardeal laico da
Revolução, admirado e respeitado pelo seu povo, que nele
identifica a antítese de um despota. Acaba de o confirmar em
Santiago com um dos seus discursos criadores, repassado de
humanismo, uma peça oratória sobre a crise global da
civilização que é simultaneamente um guia para a acção.
A própria riqueza, pouco conhecida na Europa, do debate de
ideias constitui um desmentido aos que ali embarcam na eterna
campanha em torno dos direitos humanos. É um debate tão
intenso, diversificado e ambicioso que nele se integra a
reflexão sobre o próprio conteúdo da ideologia cubana. Existe
consenso no tocante a uma premissa quanto se debate o futuro: a
fidelidade à opção socialista. Em Cuba não não haverá
contrarrevolução. Mas não é possível por ora esboçar com um
mínimo de rigor o perfil que o socialismo assumirá em Cuba
quando o cerco imperial findar. As vicissitudes da história
impediram até hoje o povo de lhe traçar os contornos, metendo
ombros a essa obra de arte humanista. Para conviver num mercado
globalizado cujas regras de funcionamento são impostas por
transnacionais que erigiram o neoliberalismo em religião, Cuba
terá ainda de idear algo que seja o prólogo do seu futuro
modelo de socialismo. Não seria possível construir um
socialismo avançado num país bloqueado, submetido a uma
agressão permanente pelo império mais poderoso do nosso tempo.
Os que isso exigem do povo cubano, criticando as imperfeições e
contradições do seu socialismo, partem de uma concepção
idealista da história, incompatível com o marxismo.
Pessoalmente, creio, repito, que Cuba nestes 40 anos dramáticos
foi muito mais longe do que se poderia esperar. Pelo heroísmo do
seu povo, pelo que este já fez tornou-se merecedora da gratidão
da humanidade. M.U.R.